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No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

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Festa

Carla Ladeira Pimentel Águas
Publicado em 2019-04-01

A festa varia de cultura para cultura, de evento para evento, de dimensões dentro de um mesmo evento. Seja como for, Mikhail Bakhtin (1987) a considera uma forma primordial da civilização humana. Portanto, vai muito além de um mero produto das condições e finalidades do trabalho coletivo e extrapola, igualmente, a necessidade de descanso periódico. Mais do que tudo isso, sempre exprimiu uma concepção de mundo. Consubstanciada pelo corpo e atravessada pela performance, permite variadas abordagens: pode ser tida como rebelde ou inofensiva, risonha ou severa, sagrada ou profana, aliada da ordem ou do caos. Seja como for, deve ser vista dentro do fervor das relações que lhe dão forma – e que, por sua vez, ajuda a formatar.

 

Sob a perspectiva das epistemologias do Sul, esta voz festiva não permite sínteses ou interpretações unívocas, o que a torna uma teia de muitas narrativas. A sua caracterização não pode ser taxativa: quando é uma afirmação daqueles que detêm o poder, reafirma a ordem social; também pode ser uma conquista temporária, como as inversões, que emergem nas brechas do sistema. Pode ser ainda a encarnação simbólica de coletividades cujos modelos diferem – e competem – com o hegemônico. Por ser fundamentalmente múltipla, diferentes doses de cada um desses aspectos podem até estar presentes dentro de uma mesma festa.

 

Este olhar sobre a festa exige a desestabilização do conceito de identidade, que, para Stuart Hall (1996), está ligada a uma narrativização de si mesmos e vincula-se mais ao futuro que ao passado, sendo entendida como um espaço temporário ou articulação.  Desde uma visão igualmente fluida, para Norberto Guarinello (2001) a festa é um produto da realidade social e, como tal, expressa ativamente os seus conflitos, tensões, censuras. Obviamente, pode representar a tentativa de impor determinada identidade segmentária ao conjunto da sociedade, mas assumi-la apenas como conservadora ou puramente emancipatória pode significar, em ambos os casos, uma simplificação.

 

Por ser capaz de promover o adensamento da noção de coletividade, a festa torna-se especialmente relevante para grupos sociais cuja rotina está em permanente ameaça. Quando forças subalternizadas entram em diálogo ou confronto, no campo simbólico, com a ordem estabelecida, tais disputas podem desafiar a hegemonia e assim a festa revela seu potencial transgressor.

 

A historiografia flagra frequentes vínculos entre festa/rebelião – protestos que viraram festa, festas que se transformaram em protesto ou rebeliões que eclodiam durante ciclos festivos. Apesar disso, não raro a dimensão rebelde da festa confundiu as autoridades, perante a falta de um veredicto final a respeito dos seus reais efeitos e intenções.

 

Lembremos que, para Boaventura Santos (2002), a construção de um novo senso comum passa por três dimensões: solidariedade (dimensão ética), participação (dimensão política) e prazer (dimensão estética). A busca por tais elementos deve começar a partir das representações marginalizadas pela modernidade – o princípio da comunidade e a racionalidade estético-expressiva. Nesta interseção, constata-se com maior nitidez que a dominação é um trabalho incompleto.

 

O estético é o território do prazer, das afetividades, que foram ignorados – ou mesmo asfixiados – pela racionalidade ocidental. Apesar de regidas por códigos, as festividades incluem aspectos pouco passíveis à cristalização de rotinas reguladoras: as regras existem, mas são atravessadas pelo riso e pelo corpo, dois elementos desestabilizadores. Esta característica faz da festa um espaço que não pode ser plenamente controlado, o que significa imprevisibilidade e criatividade. Portanto, a festa pode ser uma forma intersticial de resistência e um espaço de emancipação social porque, apesar das codificações, é vivida de diferentes maneiras. Em maior ou menor medida, e sob a interferência do prazer, pode ser pouco afeita à universalização da verdade.

 

Em sua desutilidade, a festa pode romper com as relações causais e com as lógicas de acumulação. Os sinais de insubmissão da festa podem estar também na insistente conservação de memórias outras, distintas das narrativas hegemônicas, o que a torna um foco privilegiado de subversão dos discursos oficiais. Assim, a festa é também um lugar de enunciação: fortalecida ou débil, uma festa gestada desde o Sul metafórico será igualmente uma voz do Sul.

 

Na sua multiplicidade, a festa como afirmação da comunidade diante de si mesma e enquanto afirmação de identidade perante o outro falam do mesmo – da possibilidade não só de sobrevivência, mas de produção e afirmação simbólica de modelos outros de viver, produzir, consumir e entender o mundo – apesar de tudo.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Bakhtin, Mikhail (1987), A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora UnB.

Guarinello, Norberto (2001), “Festa, trabalho e cotidiano”, in Jancsó; Kantor (orgs.), Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa, V.II, São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial/Hucitec/Fapesp, 969-975.

Hall, Stuart (1996), “Who needs ‘Identity’?”, in Hall; Gay (orgs.), Questions of Cultural Identity. New Delhi: Sage Publications, 1-17.

Santos, Boaventura (2002), A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento.

 

Carla Águas, Doutora pelo Programa de Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (CES/FEUC); pós-doutoranda pelo Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília (ELA/UnB).

 

 

Como citar

Águas, Carla Ladeira Pimentel (2019), "Festa", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24287. ISBN: 978-989-8847-08-9