Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Hibridação

Carolina Peixoto
Publicado em 2019-04-01

Hibridação é o ato de produzir uma coisa a partir de duas (ou mais) coisas distintas. Contudo, também pode consistir em realçar as diversas partes que formam uma entidade única. Ou seja, a hibridação pode ser invocada tanto para indicar fusão, síntese e assimilação como para sugerir contrafusão, antítese e disjunção, ou até para aludir situações em que todos estes fenômenos ocorrem simultaneamente, como no caso das complexas relações entre colonizadores e colonizados.

 

Os campos da linguagem e do sexo foram aqueles em que a interação existente dentro da zona de contato produzida pela colonização se fez mais notória por produzirem línguas (crioulo, pidgin) e pessoas (mestiças/os) consideradas ‘híbridas’. Entretanto, o fenômeno da hibridação no campo da linguagem não parece ter causado tão profunda e duradoura perturbação da ordem social estabelecida quanto os/as filhos/as mestiços/as resultantes das relações sexuais entre colonizadores/as e colonizadas/os. No século XIX, bem como durante a primeira metade do século XX, o termo hibridação era usado principalmente para fazer referência a um fenômeno fisiológico: o cruzamento entre diferentes espécies e/ou ‘raças’. Naquele contexto, indivíduos mestiços foram encarados como incorporações de formas ameaçadoras de perversão e degeneração dando azo a intermináveis extensões metafóricas fomentadas pelo discurso racial ao mesmo tempo em que o alimentavam. Paradoxalmente, nomear as misturas humanas como ‘degeneração’ tanto serviria para afirmar a norma como para subvertê-la pela anulação dos termos da distinção, abrindo a perspectiva da desconstrução da própria ideia de ‘raça’ enquanto tal. Assim, apesar de ter florescido no centro da teoria racial, a hibridação também ajudou a expor a vulnerabilidade desta teoria.

 

Como nos lembra Robert Young (1995: 19), ao introduzir a problemática da sexualidade no centro da raça e da cultura, a hibridação sugere a necessidade de revermos as estimativas normativas da posição das mulheres na teoria sociocultural no século XIX. Cuja figura, no entanto, continua a ser, regra geral, a de ‘sujeito historicamente silenciado’: mulheres subalternas que só se tornam um agente produtivo através de um ato de violação colonial. Esse aporte já seria suficiente para demonstrar a relevância do conceito, mas, além disso, a hibridação pode funcionar como uma caixa acústica amplificadora das vozes contestadoras e reivindicativas de vários outros sujeitos historicamente silenciados como sugerem Homi Bhabha (1998) e Stuart Hall (1996).

 

No final do século XX, o termo hibridação foi reativado no âmbito dos estudos culturais e pós-coloniais para descrever fenômenos políticos-culturais. Hoje, reinvocamos este conceito como uma noção de um processo orgânico e/ou intencional de enxerto de diversidade na singularidade. Neste sentido, o conceito de hibridação tem sido utilizado de várias maneiras no campo da linguística, da cultura, da política, das questões étnico-raciais, etc. Talvez a mais corriqueira utilização da hibridação seja para significar apenas uma ‘troca’ entre culturas. Este uso simplificador do conceito é merecedor das críticas que tem recebido uma vez que, de modo geral, implica negar e/ou negligenciar o desequilíbrio e a desigualdade das relações de poder em referência. Em contrapartida, quando explorado em toda a sua complexidade, este conceito não só reitera e reforça as dinâmicas da economia conflituosa que lhe deu origem, mas reordena dentro de sua própria estrutura antitética as tensões e divisões desta economia acentuando as dimensões da violência e das lógicas de poder que lhes estão associadas.

 

Inspirados pela leitura de Bakhtin, Hall, Bhabha e Young reconhecem que a hibridação é em si um conceito híbrido entre duas esferas distintas, uma orgânica, inconsciente, e outra intencional, de grande potencial político e contestatório. Uma hibridação inconsciente, cuja gestação dá origem a novas formas de amalgamação em vez de contestação, pode ser interpretada como sinônimo dos conceitos de ‘crioulização’ ou métissage: processo pelo qual duas ou mais culturas fundem-se resultando uma nova. Aqui destacamos, como todos os autores supracitados, a segunda esfera da hibridação. Aquela que intencionalmente apresenta a multiplicidade de pontos de vista de uma estrutura conflituosa permitindo uma atividade contestatória num cenário politizado onde as diferenças culturais atuam com e contra as outras dialogicamente.

 

Nesta forma radical de desarticular a autoridade, a hibridação destaca-se como linguagem interrogativa dos/as subalternizados/as. Apesar disso, na prática, o potencial contra-hegemónico da hibridação – no sentido de capacitar a emergência de novas estratégias políticas para desafiar e transformar os regimes dominantes, envolvendo grupos e comunidades que têm histórias, tradições, identidades e trajetórias, de fato, muito diferentes, dando lugar a uma política que trabalhe com e através da diferença, que seja capaz de construir novas formas de solidariedade e identificação que tornem a luta e a resistência comuns possíveis, mas sem suprimir a real heterogeneidade das identidades e interesses – permanece pouco explorado.

 

É sobretudo por desvelar a ambivalência colonial minando a própria base sobre a qual o discurso imperial-colonialista enraiza(va) suas pretensões de superioridade, promovendo o reconhecimento da diversidade e evidenciando a impossibilidade do essencialismo, que a hibridação tem sido utilizada como um conceito-chave dos estudos culturais e pós-coloniais. Mas o seu contributo para o desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipatório pode ser ainda maior, cabe a nós explorá-lo.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Bhabha, Homi (1998), O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo horizonte: Editora UFMG.

Hall, Stuart (1996), “New Ethnicities”, in David Morley and Kuan-Hsing Chen (eds.), Critical dialogues in cultural studies. London: Routledge. pp. 442-451.

Young, Robert (1995), Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race. London: Routledge.

 


Carolina Peixoto é doutorada em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra e Professora responsável pela introdução das Epistemologias do Sul no conteúdo programático oferecido aos estudantes de licenciatura da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de Concepción (UdeC), Chile.

 

 

Como citar

Peixoto, Carolina (2019), "Hibridação", Dicionário Alice. Consultado a 19.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24298. ISBN: 978-989-8847-08-9