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Liberdade

Fabrice Schurmans
Publicado em 2019-04-01

Do latim libertas, -atis, de liber, “homem livre” por oposição ao escravo. Definir a liberdade é, sem dúvida, um dos exercícios mais arriscados a que os filósofos se entregam, já que a noção remete para uma contradição fundamental assinalada por H. Arendt: “a dificuldade pode ser resumida como a contradição entre a nossa consciência que nos diz que somos livres, e consequentemente responsáveis, e a nossa experiência quotidiana no mundo exterior onde nos orientamos de acordo com o princípio da causalidade.” É necessário começar por identificar os dois planos a partir dos quais é possível abordar a liberdade, o da observação empírica (a liberdade que pertence à ordem do fazer, da exterioridade, da ação) e o da subjetividade (a liberdade que emana do sujeito, da interioridade, da vontade). O primeiro plano corresponde frequentemente à forma adotada pelos dicionários para abordarem a noção. Assim, no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, das treze acepções, a primeira aponta para: “a condição de um ser que está isento de constrangimento, atuando consoante as leis da sua natureza. Até há poucos anos, na aldeia, os animais domésticos andavam em liberdade pelas ruas.” Neste ponto, o dicionário insere-se numa tradição que podemos fazer remontar a T. Hobbes, que, em Leviathan (1651), descreve a liberdade de maneira simples: é livre quem não encontra obstáculos (exteriores) nem entraves ao seu movimento. Note-se que tal se aplicava a todo o ser vivo, dotado ou não de capacidade de raciocínio.

 

A mesma abordagem está em An Essay Concerning Human Understanding (1690) de J. Locke, onde a liberdade é definida da seguinte forma: “o poder de fazer ou de não fazer, de fazer ou de se abster de fazer, de acordo com o que queremos”. Segundo esta perspetiva, ser livre é poder, nem mais nem menos. Considerada como uma realidade descritível, a liberdade declina-se também no plural na medida em que existem tantas liberdades quanto ações possíveis. O liberalismo político conceberá esta acepção de liberdade como independência do sujeito garantida pelo Estado e delimitada pela lei. Montesquieu e B. Constant são dois marcos essenciais nesta evolução da definição de liberdade. Em De l’Esprit des lois (1748), o primeiro vê a liberdade como “o direito de fazer tudo o que as leis permitem” e, em De la liberté des Anciens comparée à celle des modernes (1819), o segundo apresenta os fundamentos da liberdade tal como é entendida pelo liberalismo moderno: “É o direito para todos de não estar submetido a não ser à lei, de não poder ser nem preso, nem detido, nem morto, nem maltratado de nenhuma maneira, pela vontade arbitrária de um ou vários indivíduos […]” . Em On Liberty (1859), J.S. Mill pensa a noção a partir do interesse do indivíduo: a liberdade implica a proteção contra a coerção, particularmente dos outros ou da soberania política, sobre o indivíduo. Ser livre implica aqui “ser livre de toda a interferência externa” (I. Berlin).

 

No segundo plano, trata-se de abordar a liberdade a partir do agente, da maneira como ele se pensa e pensa a sua relação com o mundo. A questão essencial quando se trata de abordar a liberdade a partir da interioridade é a da causalidade. A tese (“nem tudo acontece de acordo com as leis da natureza”, “algo pode acontecer livremente”) e a antítese (“tudo acontece de acordo com as leis da natureza”) de Kant são bem conhecidas. O que o filósofo alemão mostraria em Crítica da razão pura (1781) é que estas duas propostas podem de facto ser verdadeiras ao mesmo tempo. É possível pensar juntamente, mas em planos diferentes, a necessidade de fenómenos físicos e a liberdade de ação. A questão incide, entre outros, sobre este ponto específico: devemos admitir o poder de iniciar a partir de nós próprios uma série de coisas ou de estados sucessivos? Imagina-se facilmente o impacto da Revolução francesa nos filósofos a partir deste ponto de vista: uma nova ordem política surgiu então em total ruptura com a ordem anterior.

 

O que, todavia, custou a estas abordagens a ter em conta é a existência de regimes de exceção, quer dizer de sujeitos que, durante muito tempo, escaparam à liberdade entendida a partir da Europa: no interior das suas fronteiras, as mulheres e o proletariado e, no exterior, os povos colonizados cuja liberdade exterior estava limitada por um quadro jurídico diferente do que vigorava em Paris ou Londres. O jovem Marx (1843) mostraria que a emancipação garantida pela Déclaration des droits de l’homme et du citoyen (1791) na realidade apenas significava a emancipação do homem burguês e que a Liberdade não se fundava na relação do homem ao homem mas na separação do homem do homem. Por sua vez, Olympe de Gouges (1791) e J.S Mill (1869) evidenciaram que a Liberdade em questão apenas dizia respeito à parte masculina do corpo social.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Arendt, Hannah ([1968], 2006), “What is freedom?”, in Between past and future, eight exercises in political thought. London: Penguin Books.

Mill, John Stuart ([1859], 2015), Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70.

Marx, Karl, ([1843], 2010), Sobre a questão judaíca. Lisboa: Cotovia.

 


Fabrice Schurmans é doutorado em Estudos pós-coloniais (CES). As suas publicações incidem sobre literaturas pós-coloniais numa perspetiva comparada e interdisciplinar e questões teóricas pós-coloniais (e.g. tradução, fronteira, identidade). Publicou também várias traduções de peças de teatro portuguesas. É autor de contos e romances.

 

 

Como citar

Schurmans, Fabrice (2019), "Liberdade", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24314. ISBN: 978-989-8847-08-9