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Racionalidades

Isabel Gomes
Publicado em 2019-04-01

“Já nos habituámos a ver a razão moderna sentada no banco dos réus”, afirma Miguel Baptista Pereira (1992). Neste texto, o filósofo, amigo pessoal de Boaventura de Sousa Santos, coloca na primeira linha de acusação da lógica racional moderna “a natureza e a vida ameaçadas de holocausto”. Todavia acrescenta, de imediato, que o julgamento da modernidade não pode ser sumário, havendo que distinguir entre o seu contributo positivo e os seus limites e fracassos. É no mesmo horizonte histórico-reflexivo que se enquadra o questionamento de Boaventura de Sousa Santos acerca do projeto sócio-cultural moderno e das distintas racionalidades que dele emergiram: a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica, a racionalidade moral-prática da ética e do direito e a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura. Rejeitando, também, a condenação sumária da Modernidade, reconhece-lhe a contradição dos seus projectos mas, simultaneamente, a riqueza de possibilidades na configuração de um paradigma futuro.


Na sua reflexão acerca das racionalidades do paradigma moderno, o sociólogo das Epistemologias do Sul abre caminhos para a construção de lugares habitados por uma racionalidade mais plural, como contraponto ao desencantado paradigma moderno, que conferiu o primado à racionalidade científica e tecnológica.


Na análise do projeto social-moderno, Boaventura de Sousa Santos identifica dois pilares fundamentais: o pilar da regulação e o pilar da emancipação. O primeiro é constituído por três princípios – do Estado, do mercado e da comunidade – e o segundo pelos três tipos de racionalidade acima referidos. Do desenvolvimento harmonioso e recíproco dos dois pilares estava dependente a racionalização da vida coletiva e individual e a concretização de valores como a justiça, a solidariedade, a igualdade e a liberdade, entre outros. Todavia, os desequilíbrios cedo se fizeram sentir. Surgiram excessos e défices reconhecidos, de imediato, como constitutivos do próprio paradigma em processo, cuja gestão foi confiada à ciência. A racionalidade cognitivo-instrumental científica e tecnológica inicia assim a ocupação feroz dos territórios das demais racionalidades. É uma razão que se posiciona acima de qualquer juízo moral, que, aliando-se à técnica, coloniza a política, assim como todas as experiências humanas e sociais, fazendo da natureza e da sociedade recursos ao dispor do poder. Até o universo da sensibilidade e das artes se viu contaminado pela magia da ciência e da técnica, como atestam os movimentos vanguardistas dos últimos anos do século XIX e início do século XX.


No que respeita à intrusão no pilar da regulação, a hipercientifização da razão foi responsável pelo desenvolvimento desregrado do mercado que se impôs aos demais princípios, traduzindo-se num esgotamento do princípio da comunidade e numa invasão do princípio do Estado. Em suma, a articulação entre a racionalidade científica e o mercado foram responsáveis pelo incessante agravamento de excessos e défices do paradigma. Estes, por seu lado, conduziram à já referida ameaça de destruição da natureza e da vida, bem como ao profundo desequilíbrio social.


No entanto, no mesmo solo em que nasce o perigo, Boaventura de Sousa Santos vê emergir possibilidades de futuro. Reconhece-as nas representações da modernidade que, de algum modo, resistiram à cooptação total. Trata-se do princípio da comunidade, no pilar da regulação, e da racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura, na matriz da emancipação.


A razão sensível, em si mesma inacabada e indefinível, une, na sua ação-experiência, a intencionalidade e a causalidade; revaloriza a qualidade em detrimento da quantidade e reabilita o debate acerca do sentido da verdade. Abre, assim, espaço a outras verdades para além da verdade-adequação, específica da ciência. As experiências de prazer, autoria e artefactualidade discursiva (Santos: 2002), constitutivas da racionalidade estético-expressiva, transcendem os limites da mera explicação científica e do ativismo epistemológico e tecnológico, invisibilizador do ser. Por outro lado, abrem a novas experiências de comunidade: lúdicas, criativas e argumentativamente abertas. Enfim, a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura, cruzando, na sua acção, a razão teórico-discursiva e a vivência plural do corpo sensível, abre o campo dos possíveis a uma razão plural prática.


Recorrendo a um distinto jogo de interações entre a comunidade e as distintas racionalidades emancipatórias, herdadas da modernidade, é possível, segundo Boaventura de Sousa Santos, o esboço de um novo paradigma. Um paradigma superador da epistemologia e da ontologia modernas, no qual se conjugam uma dimensão teórico-epistemológica e uma dimensão prática-social do conhecimento e da vida. Esta dupla dimensão é visível na forma como o seu autor o designou, a saber: o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Pereira, Miguel Baptista (1992), “Modernidade, Fundamentalismo e Pós-Modernidade”, Revista Filosófica de Coimbra, 2, 206-263.
Santos, Boaventura de Sousa (2002), A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento. [2.ª ed.]
Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do Tempo. Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.

 

Isabel Gomes é doutoranda em Pós-Colonialismos e Cidadania Global no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade de Coimbra. Pós-graduou-se em Cultura e Literatura Africana, pela Escola Superior de Educação de Santarém e Mediação de Conflitos, pela Universidade Lusófona do Porto.

 

Como citar

Gomes, Isabel (2019), "Racionalidades", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24500. ISBN: 978-989-8847-08-9