Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Sementes

Irina Castro
Publicado em 2019-04-01

As sementes, enquanto a cápsula onde reside o ciclo da vida, são fonte e origem das mais de 250 mil espécies de plantas em todo o planeta. A juntar à sua diversidade biológica está também uma variedade de cores, texturas e sabores, constitutivas de uma diversidade que se reflete na construção da história humana.


Esta diversidade, que pode ser considerada também constitutiva da nossa espécie, atribui às sementes um papel de companheiras na nossa própria evolução. Na nossa relação com esta diversidade, e da aprendizagem milenar que temos com elas, é possível afirmar que essa relação é coevolutiva. Uma coevolução onde a interdependência está na base do surgimento de milhares de variedades de plantas cujas sementes incorporam não só as relações históricas que a humanidade veio a estabelecer com a natureza, mas também as dinâmicas sociais humanas. As múltiplas práticas, e também as narrativas, que hoje encontramos sobre as sementes resultam assim de uma relação de profunda intimidade material e espiritual.


No entanto, por não serem propriedade de algo divino, mas produto das nossas práticas, as sementes incorporam as relações sociais da produção, encontrando-se estas representadas nas práticas humanas de as guardar, plantar, alterar, e de reescrever a sua biologia de acordo com as necessidades do momento presente e do futuro. A atual diversidade de sementes de espécies essenciais à humanidade - como as do milho, do trigo e do arroz, entre outras - resultaram dessa coevolução semente-humanidade. Atualmente, e na narrativa que as inscreve enquanto património comum, as sementes apresentam-se como objetos de luta e resistência aos avanços de conceções ideológicas que o neoliberalismo faz da biologia e do tempo. Um exemplo dessas conceções são os organismos geneticamente modificados (OGM) aplicados à agricultura e florestas.


Produzidos com recurso a tecnologias que permitem a alteração de segmentos do genoma, introduzindo genes de espécies filogeneticamente distantes, e de forma a configurar novas, e aceleradas, características consideradas desejáveis à produção de larga escala, os novos seres que dai resultam estabelecem novas formas de relacionamento ecológico e social.


Uma das críticas que é feita a estes organismos é a forma como, por assentarem em premissas científicas baseadas na eficiência da aceleração do tempo, deixam de poder ser apropriados pelas instituições da comunidade, perdendo assim a capacidade de estabelecerem relações ecológicas sustentáveis. Outra crítica, é a perda do controlo sobre as sementes, na sua dualidade grão-semente, por parte das comunidades e a passagem da dimensão reprodutiva da produção para empresas transnacionais de capital privado. Esta apropriação das sementes pelo capital transnacional está a ser considerada por várias vozes críticas como uma nova forma de colonialismo. Uma outra forma de colonização, ainda relativa às sementes, é a da apropriação por parte de empresas privadas do norte global da diversidade biológica do sul, através do patenteamento de variedades crioulas ou desenvolvidas localmente. Esta apropriação só é possível, como diria Boaventura de Sousa Santos, através da anulação dos conhecimentos situados e da inscrição sobre o mundo de um imaginário de ausências no sul.


Recorrendo a narrativas de urgência, como a da crise climática, e conceções de fome que se baseiam apenas em métricas quantitativas - ocultando as dimensões da prática de comer que se constituem tanto nas propriedades nutricionais, diversidade, cor, textura e sabor dos alimentos - o conhecimento promovido pela hegemonia da engenharia genética oculta a existência da diversidade do sul. Um exemplo é a forma como se oculta a existência de 100 mil variedades de arroz adaptadas a vários climas e orografias, e com diferentes propriedades nutricionais, no sentido de promover uma única variedade, o arroz dourado. O arroz dourado é um arroz transgénico enriquecido com vitamina A e betacarotenos supostamente criado para combater as carências de vitaminas dos países do sul.


A forma de produção agrícola hegemónica, baseada na monocultura, promove um mundo cego às causas e origens dos problemas climáticos, da extinção das espécies, da perda de ecossistemas e da fome, reconfigurando a natureza histórica das sementes através de um processo de neo-domesticação esclavagista que as transforma em indivíduos zombies, como diria a investigadora Rita Serra. Incapazes sequer de se apropriarem das novas características e se constituírem assim como novas espécies ou variedades.


A natureza histórica das sementes é a prática de pôr em comum. Uma espécie só é espécie porque a sua prática quotidiana é a de pôr em relação. Esta natureza histórica desafia assim o sentido do indivíduo isolado que as epistemologias hegemónicas procuram promover. O aparecimento de sementes transgénicas, cujo corpo materializa uma ideologia de rápida acumulação e individualidade, rouba a natureza criativa quer da humanidade, quer das espécies, e apropria-se de cultivos que evoluíram devido a essa criatividade, agudizando a crise da democracia e impossibilitando aos povos do mundo a autodeterminação sobre o que comem e como o produzem.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Haraway, Donna (2008), When Species Meet. Minneapolis & London: University Minnesota Press.
Kloppenburg, Jack Ralph (2004), First the seed: the political economy of plant biotechnology. London: The University of Wisconsin Press. [2.nd ed.]
Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do tempo: para uma nova cultura política (Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática, Volume IV). Porto: Edições Afrontamento.
Shiva, Vandana (1997), The violence of the Green Revolution: Third World agriculture, ecology and politics. London: Zed Books.

 

Irina Castro é investigadora júnior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, núcleo Economia, Ciência e Sociedade. É doutoranda no programa “Governação, conhecimento e inovação” da Faculdade de Economia, da Universidade de Coimbra, com bolsa financiada pela FCT (SFRH/BD/117707/2016).

 

Como citar

Castro, Irina (2019), "Sementes", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24536. ISBN: 978-989-8847-08-9