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Tempo, temporalidades e progresso

Luciane Lucas dos Santos
Publicado em 2019-04-01

O tempo é um dos elementos centrais da racionalidade moderno-ocidental. Nesta sua condição, tem servido de base para ocultar as hierarquias relativas às diferentes formas de domínio na modernidade - o colonialismo, o capitalismo e as relações patriarcais. Atrelado à ideia de progresso e assumindo a História como grande narrativa, o Tempo, na modernidade, hierarquiza corpos, culturas e saberes - marcando-os com as insígnias do avanço ou do atraso. Neste sentido, não seria prematuro dizer que, sendo a colonialidade o Outro da modernidade, como afirma Mignolo (2005), o tempo moderno se revele, ele mesmo, como uma das engrenagens constituintes da ‘diferença colonial’.

 

Para mostrar como o tempo, na modernidade, simultaneamente instaura e justifica linhas abissais que produzem e naturalizam assimetrias, Boaventura de Sousa Santos propôs o conceito de ‘monocultura do tempo linear’ (2006). Este conceito retrata como temporalidades e ritmos que escapam à racionalidade moderno-ocidental são produzidos como inexistentes ou irrelevantes. Consequentemente, práticas e saberes que não alinham com esta perspectiva de tempo ancorada na ideia de progresso são considerados como residuais e não-contemporâneos.

 

Este tempo linear, que parametriza e hierarquiza culturas, ancora a diferença epistemológica a partir da narrativa do desenvolvimento. É esta narrativa, aliás, que vai corroborar, no imaginário social moderno, uma cisão entre a economia e o espaço doméstico - a economia passando a ser entendida como domínio do público (Waller e Jennings, 1991), situada fora do espaço-tempo da família. As temporalidades ligadas a este espaço doméstico foram progressivamente desvalorizadas e subsumidas ao tempo nervoso de uma economia de mercado, afetando a percepção social do contributo das mulheres para a produção e reprodução da vida material das famílias. Em torno de um imaginário genderizado, forjado no âmbito da economia moderno-ocidental, a narrativa do desenvolvimento tem estimulado e consolidado a separação entre o económico e o familiar.

 

Neste contexto, é o tempo do capital, a alicerçar a economia de mercado e movimentar o discurso do desenvolvimento, que se afirma como padrão. Ou seja, é a lógica do tempo linear que se espraia e afirma como a única factível e legítima. A racionalidade moderno-ocidental, que se alimenta deste tempo linear, não permite ver outras temporalidades e ritmos que não alinhem com a ideia de progresso. As temporalidades indígenas constituem um exemplo notável - ancoradas numa relação em que os antepassados também respondem pela tessitura do presente. Nelas, a natureza não se separa da cultura; antes, lhe atribui um sentido. Funcionando como marcador temporal e constituindo uma semântica própria que entrelaça o sobrenatural e o quotidiano, a natureza impregna de sentidos os ritos de celebração e passagem, permitindo que o sagrado se manifeste em todas as dimensões da vida material.

 

Contudo, o reconhecimento tanto da existência simultânea de várias temporalidades como do facto de que elas, por vezes, se sobrepõem e se entrelaçam na conformação de diferentes contextos sociais (Mbembe, 2011) parece escapar à compreensão moderno-ocidental de mundo. As epistemologias do Norte, ainda que debatam o tempo como eixo de construção de sentido e que o complexifiquem em suas análises, esbarram numa dupla armadilha epistemológica. A primeira é a de presumirem a racionalidade ocidental como suficiente para explicar diferentes espacialidades mundo afora, ainda que atreladas a modos de ser/estar/conviver não redutíveis a esta lógica. A segunda é a de ignorarem a dinâmica de temporalidades no entrelaçamento de realidades que se tocam e interagem a todo o momento.

 

A lógica do capitalismo tem se afirmado nestas brechas. Transferindo princípios de funcionamento dos mercados para a vida quotidiana, a temporalidade dominante nos modos capitalistas de produção e consumo promovem competição e construção de hierarquias sociais não só nos momentos de trabalho, mas também nos de lazer. As epistemologias do Sul confirmam-se, neste contexto, como uma lufada de ar fresco: trazem à superfície outras narrativas temporais e constroem pontes de inteligibilidade entre diferenças. Sobretudo, tecem o tempo da confiança - aquele que é capaz de respeitar os ritmos próprios da Alteridade, ouvir e acompanhar silêncios e, a partir deles, costurar as condições necessárias para a tradução entre diferentes temporalidades e lutas.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Mbembe, Achille (2011), On the Poscolony. Berkeley: University of California Press.
Mignolo, Walter (2005), “A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade”, in Edgardo Lander (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 35-54.
Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do Tempo: para uma Nova Cultura Política. Porto: Edições Afrontamento.
Wallers, William; Jennings, Ann (1991), “A Feminist Institutionalist Reconsideration of Karl Polanyi”, Journal of Economic Issues, 25(2), 485-497.

 

Luciane Lucas dos Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, co-coordenando o núcleo de investigação em Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Entre seus principais temas de investigação estão: Economia Feminista, Estética Feminista e estudos pós-coloniais da Economia.

 

Como citar

Lucas dos Santos, Luciane (2019), "Tempo, temporalidades e progresso", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24560. ISBN: 978-989-8847-08-9