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Maria Irene Ramalho

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Xitiki

Teresa Cunha
Publicado em 2019-04-01

O xitiki é um nome em língua Changana do sul de Moçambique que designa uma prática sócio-económica que se pode caracterizar, de uma forma geral, da seguinte maneira: num grupo de pessoas constituído de forma autónoma cada participante contribui para um fundo comum com moeda, produtos, trabalho ou tempo que será, em primeiro lugar, reunido e, depois, redistribuído à vez por cada uma das pessoas membros. Apresenta-se com muitas variações quanto a procedimentos e objetivos assim como relativamente a códigos de conduta e estilos estéticos. Além do mais esta prática socioeconómica pode ser identificada em vários continentes e países sob outras designações, tais como: Hui, China, Ko, Japão, Ho, Vietname, Djanggis, Camarões, Esusu, Nigéria, Tontine, Cambodja e África Central, Wichin gye, Coreia, Likelembas, República Democrática do Congo, Abota, Guiné-Bissau, Kixikila, Angola, Stokvel, África do Sul, Tandas, México, entre outros. Tanto os dados empíricos como a literatura mostram que estas práticas são sobretudo levadas a cabo por mulheres.

 

Uma análise desenvolvimentista e que não rompa com o paradigma capitalista olha para o xitiki como um retorno, mais ou menos elaborado, à tradição ou uma mera estratégia de contingência devido à persistente escassez de recursos, e meios de acesso a eles a que está sujeita uma boa parte da população de Moçambique.

 

Contudo, a pragmática do xitiki mostra-se imbuída de uma visão de economia política do bem comum, de uma ética com especificidades extra-económicas e uma estética inserta em relações sociais complexas e ricas em variações, detalhes, significados e códigos de conduta.

 

Nas rodas de Xitiki todas as decisões importantes relativas aos objetivos do fundo comum, montantes e contribuições, calendário da redistribuição, regras de funcionamento, identificação de excepções são tomadas pelo colectivo e de forma consensual. Além disso, fazem-se registos – escritos ou não - de todas as operações realizadas que são controlados pelo grupo. Uma outra característica comum é que são escolhidas por consenso as lideranças quer executivas quer políticas de cada grupo. A sua plasticidade na procura das singularidades práticas de cada grupo não desvirtua esta auto-identificação como processo democrático.

 

A prática do xitiki é comumente inserida no que se denomina por redes de solidariedade ou de reciprocidade. Estas redes de relações incluem, entre outras, redes de parentesco, vizinhança, a comunidade religiosa, associações locais e grupos informais de poupança. Aspectos como a confiança, o respeito, os deveres mútuos, a entre-ajuda, o compromisso e a solidariedade estão na base destas redes. O compromisso e a confiabilidade de cada participante possibilitam a estabilidade de que os grupos necessitam para se manterem. O xitiki é, assim, muito mais do que um sistema de poupança e crédito rotativo pois envolve a criação e o estreitamento de relações pessoais, familiares, comunitárias e uma gratificação pessoal e colectiva na forma como se atingem os objetivos traçados.

 

Um dos seus actos distintivos é que o ‘mealheiro’ não é um objecto físico mas a confiança agregada do grupo numa pessoa ou várias pessoas que se responsabilizam pelas riquezas da pequena comunidade e que terão de prestar contas sobre elas. Esta pequena grande diferença presta-se a considerar que o xitiki envolve uma ética comportamental e de grupo assim como promove uma estética nos momentos de recolha e de distribuição dos recursos. A pessoa ou pessoas responsáveis pelo xitiki não se limitam a entregar o dinheiro mas devem também promover o envolvimento de todo o grupo no processo organizando um momento celebratório e convivial quasi ritual para que cada um dessas passagens de recursos seja um acto colectivo de reforço mútuo.

 

Para além disto, o xitiki pode ser pensado como como uma estratégia de Educação Popular entendida como a conscientização dos grupos e das comunidades ainda que não sejam nomeadas enquanto tal. Esta potencialidade endógena do xitiki é suficientemente forte para se constituir como uma instância educativa popular de valorização de aptidões e aprendizagens não escolares porém vitais, relevantes e úteis nas sociedades em causa e na consolidação e ampliação de conhecimentos dos grupos em diversas áreas dos saberes e da sua capacidade de reflexão sobre si e sobre a sociedade em geral.

 

Trata-se de uma sócio-economia que as Epistemologias do Sul nos possibilitam perceber e que podemos designar de não-capitalista, uma racionalidade ainda não-colonizada e que resulta, na maioria das vezes como ensaios múltiplos e insurgentes de pensar o futuro, no presente em vez de o relegar para um qualquer passado revisitado.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Cunha, Teresa (org.) (2011), Ensaios pela democracia. Justiça, dignidade e bem-viver. Porto: Afrontamento.
Trindade, Catarina Casimiro (2011), “Convívio e solidariedade: Práticas de xitique em Moçambique”, in Teresa Cunha, Celina Santos, Tatiana Moura, Sofia Silva (orgs.), Elas no sul e no norte. Coimbra: AJP, 183-192.

 

Teresa Cunha é investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra e professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra. Investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique.

 

Como citar

Cunha, Teresa (2019), "Xitiki", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24586. ISBN: 978-989-8847-08-9