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Maria Irene Ramalho

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Exílio

Shahd Wadi
Publicado em 2019-04-22

O exílio é um abismo forçado entre o ser humano e a sua casa. Um ser exilado sofre de uma condição desconfortável, estando preso na fronteira metafórica do novo lugar sem nunca abandonar a pátria de origem para viver eternamente no território de não-pertença.

 

O exílio está associado à ideia de grupo. É, na verdade, um sentimento que resulta, na maior parte das vezes, do facto de estar longe do grupo. Por isso, na teoria de Edward Said, é questionada a ligação profunda à pátria provocada pelo sentimento de exílio e esta mesma ligação no caso de um orgulho nacionalista. Ambos, o exílio e o nacionalismo, tocam nos conceitos coletivos e ao mesmo tempo nos sentimentos mais pessoais. Todavia, a diferença é justamente que o exílio é um estado descontínuo. Uma pessoa exilada é um indivíduo que procura reconstruir o seu ser “interrompido” ligando-se a uma comunidade imaginada.

 

Embora qualquer impedimento de regressar possa ser considerado exílio, existem diferenças entre pessoas exiladas, refugiadas, expatriadas e emigradas. O exílio está associado à experiência de desterro, a qual se consubstancia na expulsão de um ser humano por outro e no impedimento de regressar a casa, o que resulta num sentimento de eterna melancolia. O exílio é, então, sobretudo uma condição interna de alienação, solidão e estranhamento.

 

Diferentes dos exilados, os “refugiados” estão ligados sobretudo a situações políticas, sociais ou económicas. Estas situações sugerem a ideia de multidões de inocentes a requererem asilo internacional após a fuga ao terror, e assim a preocupação de uma pessoa refugiada é sobretudo ser aceite. Acompanha os refugiados uma necessidade de “resolver” imediatamente a sua situação para superar a “vergonha” que a sua carência lhes traz. A sua história provoca também “vergonha” nos grandes poderes, os quais recolocam os refugiados, tratando-os como um problema incómodo, assegurando que o seu estatuto seja permanentemente temporário – o caso dos refugiados palestinianos dura há mais de meio século – e certificando-se que nunca se sintam em casa.

 

Quanto às pessoas “expatriadas”, e apesar de partilharem, muitas vezes, os mesmos sentimentos dos exilados, elas partem voluntariamente por razões pessoais, e por isso não sofrem da proscrição absoluta do exílio.

 

Já no caso de “emigrantes”, encontram-se numa situação ambígua. São pessoas que partem para outro lugar, sendo que, mesmo que a questão da escolha não seja tão clara, estas pessoas também não são impedidas de voltar às suas pátrias. São mesmo, em alguns casos, vistos como construtores de novas nações, o que lhes retira o estigma do exílio.

 

A diferença entre o exílio e as outras condições referidas está, no fundo, ligada à questão da possibilidade/impossibilidade de regresso e ao trauma que esta traz. Todavia, o sentimento de exílio pode muitas vezes ser partilhado e vivido em qualquer das categorias mencionadas. Ao ser um estado espiritual e uma condição interna, o exílio pode ainda abater-se sobre qualquer pessoa mesmo vivendo na pátria de origem. Segundo o pensamento de Julia Kristeva, por exemplo, muitas mulheres sentem-se exiladas dentro da sua própria pátria quando, nas sociedades patriarcais, são confinadas a clichés e generalizações ou às fronteiras do seu corpo e do seu espaço.

 

Uma pessoa, em particular uma mulher exilada, que vive na fronteira é, na ideia de Glória Anzaldúa, uma “mestiza”. Ela é um produto da transferência dos valores culturais e espirituais de um grupo para outro. Este estado de transição permanente parece uma alma presa entre dois mundos, sofre na carne uma luta entre fronteiras, uma guerra interior, como uma sanduíche entre duas culturas, criando assim uma terceira cultura. Uma pessoa exilada habita um intervalo sem centro, e é neste próprio buraco que o sentido de ser, a história, identidade e língua se fazem.

 

Apesar da tristeza do exílio ser algo que jamais poderá ser superado, esta oferece alternativas de conhecimento e produção. A cultura moderna ocidental é em grande parte criada por pessoas exiladas, refugiadas e imigradas. A pessoa exilada tem uma pluralidade de visão, ou seja, tem consciência de pelo menos duas culturas, dois cenários ou dois países. A inquietação do exílio é o que faculta os instrumentos para criar, é o que leva muitos poetas a escrever e muitos artistas a pintar. É uma tentativa de explicar o que humanamente incompreensível, através de uma linguagem íntima sempre em tradução. Criar e realizar é uma tentativa – normalmente falhada – de superar a dor e apanhar o eu espalhado entre a casa, o exílio e a terra de ninguém. Produzir também é recriar a noção de casa, ultrapassando as suas fronteiras confinadas e encontrar, ao mesmo, tempo o conforto do lar, quebrando a dicotomia entre a memória e o futuro. A impossibilidade de regresso à casa torna-se possível através da criação.

 

Uma pessoa exilada está em constante negociação entre a casa de origem e aquela nova, entre a língua-cultura-memória-mãe e aquela que vai acontecendo. Em conclusão, o exílio é uma luta constante entre aqui e ali, que finalmente se confundem e se entrelaçam.

 


Further Readings:
Anzaldúa, Gloria (1987), Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters, Aunt Lute.
Said, Edward (1994), “Reflections on exile”, in M. Robinson (ed.), Altogether elsewhere: Writers on exile. Boston: Faber & Faber, pp. 137-149.
Robertson, George et al (Eds.) (2005), Travellers’ Tales: Narrative of Home and Displacement. Taylor & Francis e-Library.

 


Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Procurou as suas resistências em “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio”, a sua tese de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra. Aqui, considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.


 

Como citar

Wadi, Shahd (2019), "Exílio", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24963. ISBN: 978-989-8847-08-9