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Desastre

Felipe Milanez
Publicado em 2019-04-01

Desastres são acontecimentos extremos que provocam uma ruptura profunda na normalidade, situação em que a existência de uma comunidade é percebida como ameaçada. Uma sociologia do desastre expõe as contradições do capitalismo e do colonialismo associadas aos efeitos socioambientais, como a construção social dos riscos, das vulnerabilidades e das desigualdades das comunidades impactadas. Desnaturalizar o desastre expõe duas formas da razão indolente: a razão metonímica, que produz as totalidades universalisantes, a dicotomia hierarquizante e simetria; e a razão impotente, que estabelece o determinismo. Em oposição, um pensamento pós abissal produz a visibilização dos ausentes, as lutas por existência e reconhecimento frente a produção hegemônica da insegurança.

 

Diferentes tipologias classificam o fenômeno como natural ou antrópico, associado à tecnologia ou social. Desastres podem ser grandes catástrofes como o Tsunami de 2004 no Oceano Índico, ou o furacão Katrina, em Nova Orleans, em 2005; provocados pelo capital, como o colapso financeiro de 2008; ou resultado dos efeitos violentos da expansão colonial do capital e da tecnologia, como o vazamento de gás em Bhopal, na Índia, em 1984. Em comum, revelam a lógica da produção da não-existência das comunidades impactadas, o que Robert Bullard chama de uma “geografia da vulnerabilidade”.

 

A invisibilização e a construção das ausências são produzidas através da terceira lógica da não-existência de Boaventura de Sousa Santos, a lógica da classificação social, que “naturaliza as diferenças” e distribui as populações por categorias de hierarquia: “a não existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural” (Santos, 2006: 96). Em uma sociologia das emergências, a ecologia dos reconhecimentos confronta esta lógica que incide sobre a desqualificação dos agentes. Desse modo é construída a vulnerabilidade social, conceito associado ao grau de exposição aos riscos. Todos os riscos têm causas sociais e estruturam e são estruturados pela lógica da classificação social.

 

Essa diferença/hierarquia do mundo capitalista/colonialista pode ser representada pela metáfora do Antropoceno com o naufrágio do Titanic. Tal era o mito de um navio impossível de afundar e da potência tecnológica capaz de controlar as forças da natureza, assim como da igualdade de situações de risco no mesmo barco. A narrativa catastrófica do Antropoceno, era geológica produzida pelas transformações da Terra pelo sistema industrial capitalista/colonialista/sexista, sugere que o mundo inteiro sofrerá igualmente as decorrências das mudanças no clima. Essa retórica naturaliza as desigualdades e esconde a linha abissal que divide o mundo entre aqueles que devem se salvar daqueles que devem desaparecer. As Epistemologias do Sul explicam essas assimetrias nas definições dos riscos, e expõe a divisão abissal que marca a vulnerabilidade das pessoas e coletividades invisibilizadas, ausentes, sub-humanizadas. Um desastre é sempre sociologicamente desigual, seja o Titanic ou o Antropoceno, e os impactos atingem de forma diferente as coletividades. Os riscos operam como segregadores sociais: as desigualdades impõem a certos grupos inferiorizados a necessidade de se confrontarem com os riscos.



Em A Teoria do Choque, Naomi Klein mostra como as crises são utilizadas para a produção de mudanças que, dentro da “normalidade”, não ocorreriam. Ela cita a assertiva liberal de Milton Friedman: para que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável. Inevitável, logo naturalizado, o desastre torna-se um momento propício para a acumulação. Nesse sentido, o risco, que Ulrich Beck localiza entre a segurança e a destruição, opera como uma distribuição dos males e, em última instância, é sempre garantido pelo Estado, que distribui desigualmente os custos pela população. Na “sociedade do risco”, explica José Manuel Mendes, o Estado ocupa o papel central, tal como o socorro às corporações financeiras após a crise do subprime.

 

Desastres são acontecimentos de impacto midiáticos, seguidos por um processo de invisibilização da memória e o silêncio. Ao longo do tempo torna-se um processo lento e gradual que perde a atenção das manchetes e constitui-se em uma  “violência lenta” (Rob Nixon). Ao menos 100 mil pessoas em Bhopal continuam a sofrer os efeitos do desastre 30 anos depois.

 

A ecologia dos saberes incentiva a aprender com as experiências e a construir uma gramática de resistências, inclusive com as experiências de fim de mundo, tal como os povos Guarani na América do Sul expressam em seus mitos registrados por Curt Nimuendajú (As Lendas da Criação e Destruição do Mundo Como Fundamentos da Religião dos Apapocuva-Guarani), ou relatados por Davi Kopenawa ao antropólogo Bruce Albert em A Queda do Céu. Ao certo, estes povos, que vivem há 500 anos sob dominação racial/colonial, tiveram mundos destruídos, assistiram ao céu cair mais de uma vez, e lutam, cantam e dançam para reconstruir permanentemente a existência.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Mendes, José Manuel. (2015), Sociologia do Risco: uma breve introdução e algumas lições. Imprensa da Universidade de Coimbra

Nixon, Rob. (2011), Slow Violence and the Environmentalism of the Poor. Harvard University Press

Santos, Boaventura de Sousa. (2006), A gramática do Tempo: para uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento

 


Felipe Milanez, é Doutor em Democracia no Século XXI pelo Centro de Estudos Sociais e Professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia. Ecologista político, integra o Grupo de Trabalho em Ecologia Política, do Clacso.

 

Como citar

Milanez, Felipe (2019), "Desastre", Dicionário Alice. Consultado a 19.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=24249. ISBN: 978-989-8847-08-9