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Maria Irene Ramalho

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Neoliberalismo

João Rodrigues
Publicado em 2019-04-01

Não passaria de um slogan sem dignidade intelectual, monopolizado por críticos. Pelo contrário, não passaria de uma tentativa para regressar ao capitalismo laissez-faire do século XIX. O efeito destas duas interpretações é o mesmo: desaparecem os traços distintivos de um conjunto de ideias em movimento e que se desenvolveu a partir dos anos trinta do século XX, quando o termo é cunhado. O neoliberalismo encontrou nos turbulentos anos setenta a oportunidade para uma continuada hegemonia.

 

O neoliberalismo deve ser entendido como um projeto que busca encontrar soluções políticas, com um grau mínimo de aceitação social, permitindo, em democracias de alcance limitado, ou mesmo em regimes autoritários ditos de exceção, subordinar a atuação dos poderes públicos à promoção de engenharias políticas mercantis em áreas crescentes da vida social. Como sublinhou Santos (2006), trata-se de construir um Estado seletivamente forte. Trata-se, ademais, de transformar o Estado social em Estado penal, reforçando uma forma de disciplina complementar à que é gerada pelas forças do mercado e do mando patronal (Wacquant, 2009).

 

Alguns países do Sul global constituíram laboratórios ditatoriais para experiências neoliberais, nos anos setenta e oitenta, implicando a remoção deliberada de freios e contrapesos sociais. O Chile de Pinochet foi um exemplo pioneiro, tendo o destacado economista político neoliberal Friedrich Hayek aí declarado que uma “ditadura liberal” temporária, ao serviço da salvação do capitalismo, seria preferível a uma democracia dita antiliberal, com objetivos socialistas.

 

Onde as democracias foram mantidas ou instituídas criaram-se estruturas de constrangimento, que orientaram a ação dos governos nacionais, fosse por pressão privada de um capital com uma mobilidade internacional reconquistada, fosse por pressão pública numa escala superior, sobretudo através da entrega de poderes soberanos a instâncias supranacionais. De facto, limitar os efeitos da democracia na economia, entregando a política económica a instituições supostamente independentes do poder político e limitadas por constituições pós-nacionais e pós-democráticas informais é um dos meios preferidos: o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia são exemplos europeus de instituições desenhadas para esvaziar a soberania popular e democrática, retirando-lhe os instrumentos que lhe deram intensidade material e favorecendo assim uma apatia democrática conveniente.

 

A reconfiguração obtida do Estado e das suas funções vai para lá da privatização ou da liberalização. O objetivo é também o de encontrar soluções institucionais que favoreçam a progressiva entrada dos grupos económicos privados nas áreas da provisão pública, através de mecanismos, hoje difundidos globalmente. As parcerias público-privadas são só um exemplo.

 

Fragilizar a ação coletiva dos trabalhadores, desmantelando as instituições de desmercadorização da relação social fundamental do capitalismo, é outra das dimensões do neoliberalismo, desta vez enquanto transparente instrumento de classe. A política económica de austeridade surge como uma forma de manter o desemprego relativamente elevado, favorecendo a redução do salário direto e indireto.

 

Entretanto, as relações mais intensas de muitos cidadãos com uma finança em expansão, por via do endividamento para acesso a bens essenciais, como a habitação, ajudam no processo de mudança da natureza do laço social, o que também pressupõe uma atenção às motivações humanas, seguindo a injunção de Margaret Thatcher: “a economia é o método, mas o objetivo é mudar a alma”. A visão da solidariedade coletiva dá idealmente lugar a um novo individualismo possessivo, em que indivíduos declarados livres, porque imersos em supostos processos de mercado, aprenderiam a ser empreendedores, encarando as escolhas pelo prisma do ganho pecuniário da sua exclusiva responsabilidade (Dardot e Laval, 2009).

 

Do ponto de vista epistémico, o neoliberalismo combina um ambicioso construtivismo, mobilizando um conhecimento dominador, com uma retórica reacionária sobre a opacidade social, desaconselhando a intervenção política emancipadora. A importância dada à uniformização do senso comum popular na evolução política pretendida é combinada com retórica sobre a ordem espontânea de um mercado tendencialmente global e supostamente pacificador, embora na realidade perpetuador de uma violenta hierarquia imperial entre o centro e as múltiplas periferias. Entretanto, política, moralidade ou direito são vistos de forma meramente instrumental, valorizadas quando contribuem para legitimar os mercados, atacadas quando o não fazem, como se vê na atitude ambígua em relação ao fenómeno religioso.


A busca de justiça social – de igualização das oportunidades, capacidades e resultados através da ação coletiva dos subalternos – é apodada de inveja idealizada e política eticamente diminuída. As políticas neoliberais favorecem deliberadamente a concentração de recursos no topo da pirâmide social, embora tudo se faça para atribuir este padrão cada vez mais saliente a forças para lá do controlo político. As crises socioeconómicas recorrentes geradas são só mais uma oportunidade a não desperdiçar, beneficiando, qual círculo vicioso, de poderes cada vez mais assimetricamente distribuídos (Mirowski, 2013).

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Dardot, Pierre; Laval, Christian (2009), La nouvelle raison du monde – Essai sur la société néolibérale. Paris: La Decouverte.
Mirowski, Philip (2013), Never Let a Serious Crisis Go to Waste – How Neoliberalism Survived the Financial Meltdown. Londres: Verso.
Santos, Boaventura de Sousa (2006), “A Reinvenção Solidária e Participativa do Estado”, in A Gramática do Tempo – Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 317-349.
Wacquant, Loïc (2009), Punishing the Poor – The Neoliberal Government of Social Insecurity. Durham: Duke University Press.

 

João Rodrigues é Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Investigador do seu Centro de Estudos Sociais. É coautor do blogue de economia política Ladrões de Bicicletas e membro do Conselho Editorial do Le Monde diplomatique – edição portuguesa.

 

Como citar

Rodrigues, João (2019), "Neoliberalismo", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=24424. ISBN: 978-989-8847-08-9