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Povos indígenas isolados

Lino João de Oliveira Neves
Publicado em 2019-04-01

É surpreendente que nos dias atuais ainda existam “índios isolados”. Mais do que surpreendente, é quase inacreditável a possibilidade de que grupos humanos possam viver distanciados das relações cotidianas com outros segmentos populacionais e das comodidades do mundo moderno.


“Isolados”, “não contatados”, “arredios”, “índios bravos” etc. são termos imprecisos para indicar a existência destes grupos. Todos estes conceitos indicam explicitamente, ou sugerem de maneira subliminar o propósito de integrar esses indígenas ao modo de vida das sociedades nacionais.


Os dados disponíveis, embora um tanto imprecisos e em constante atualização, indicam cerca de 170 povos isolados no mundo contemporâneo. Em sua maioria estes povos estão localizados nas florestas densas na Amazônia e Papua-Nova Guiné, na Indonésia, havendo ainda grupos isolados nas ilhas Andamão, na Índia, e na região do Chaco paraguaio. As evidências atuais indicam que o maior número de “isolados” se encontra na Amazônia, sendo: 114 no Brasil, 23 no Peru, 13 na Bolívia, 4 no Equador, 5 na Venezuela, 2 na Colômbia e 6 no Paraguai.


Ao contrário do que diz o preconceito evolucionista que ainda hoje molda a visão sobre os indígenas, os “povos isolados” não são pessoas que desde sempre viveram isoladas em partes remotas da floresta sem contato com o mundo do branco. De uma forma ou de outra, todos os povos mantêm algum tipo de contato com outros povos vizinhos, mesmo que tais contatos sejam de distanciamento estratégico na manutenção de espaços próprios de viver defendido.


Os Povos Indígenas em Isolamento Voluntário (PIAV, em espanhol), expressão consagrada no âmbito Direito Internacional, são, em muitos casos, grupos que já mantiveram contatos – regulares ou esporádicos – com segmentos das sociedades nacionais e/ou com outros grupos étnicos, e que experimentaram em momentos anteriores situações adversas a partir das quais decidiram se retirar para o interior das florestas na busca de espaços seguros para o exercício de uma pretendida liberdade enquanto grupo social.


Durante muitos anos a principal defesa desses povos foi o refugiarem-se nas áreas remotas para manterem os seus mundos étnicos defendidos. Mais recentemente muitos desses grupos estão tomando a iniciativa de buscar contatos com outros grupos indígenas que já mantêm relações sistemáticas com a sociedade nacional.


Os “enfrentamentos” de grupos isolados com populações locais, as incursões para fora dos seus territórios e consequentemente a efetivação de contatos não são situações novas. O que se pode chamar de novidade são as “migrações” a partir das quais grupos isolados deixam os seus territórios tradicionais na busca de abrigo em outras áreas, em especial próximo a outros grupos indígenas que lhes são aparentados culturalmente.


E, nesse sentido, essas não podem ser tomadas como “migrações” espontâneas, mas, sim, motivadas pelo avanço de invasores – madeireiros, prospectores de petróleo, frentes de expansão agrícola, colonizadores, empreendimentos de desenvolvimento regional etc. – sobre os últimos espaços disponíveis ao refúgio dos “isolados”.


Assim, a busca de contato atualmente observada em vários contextos não pode ser vista como iniciativas de estreitamento das relações interétnicas, mas como tentativa de defesa frente a ameaças que se intensificam.


Antes de um designativo da inexistência de contatos anteriores, “isolados” e “em isolamento” designam uma dinâmica social de defesa da integridade cultural e de preservação da autonomia, só alcançadas no distanciamento das relações interétnicas com os segmentos das sociedades nacionais. Dessa forma, “isolamento” não deve ser tomado como oposto a “contato”. Somente é assim a partir de uma desconsideração do processo histórico de construção/reconstrução social dinamicamente vivenciado pelas sociedades humanas.


As noções de “isolamento” e “contato”, e daí a noção de “isolamento/contato” são próprias do pensamento moderno, dicotômico, em sua constante polarização de antagonismos. Aproximando o enfoque para o contexto dos próprios grupos isolados, devemos considerar que a situação de “isolamento” corresponde a busca extrema de autonomia. Assim, mais do que conceituações externas – “isolamento”, “contato”, “isolamento/contato” – que retiram dos povos isolados a sua condição de sujeitos políticos, é necessário conceituações que fortaleçam os próprios “índios livres”, “índios autônomos”, como devem ser chamados, no contexto das relações políticas interétnicas por eles buscadas através da aproximação-evitação com segmentos da sociedade nacional.


No contexto colonial que em todas as partes do planeta historicamente marca as relações dos Estados nacionais com os povos indígenas, os mais agredidos são, inegavelmente, os chamados povos isolados. Negados em sua existência, os “índios isolados” estão submetidos a constantes ameaças e frequentes massacres, tanto por frentes de explosão dos recursos naturais existentes em seus territórios, como por empreendimentos públicos de desenvolvimento nacional ou regional.


Os PIAV são, assim, o exemplo mais evidente de povos que após experimentarem a violência da subordinação imposta pela pretensa superioridade epistemológica do pensamento ocidental moderno buscam no resguardo da distância social, no inacessível das florestas, a possibilidade de manter os seus sistemas sociais, culturais, políticos e epistemológicos próprios, sistemas que desde sempre lhes vem garantindo a autonomia, ainda que em contato esquivo com outros povos.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Huertas, Beatriz (2010), Análisis de Situación de los Pueblos en Aislamiento, Contacto Reciente y Contacto Inicial de la Región Andina. Organismo Andino de Salud – Convenio Hipólito Unanue / Comisión Andina de Salud Intercultural, Lima: ORAS – CONHU.
Loebens, Guenter Francisco; Oliveira Neves, Lino João de (orgs.) (2011), Povos indígenas isolados na Amazônia: a luta pela sobrevivência. Manaus: EDUA; Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2011 [1.ª ed.] (Quito, Ecuador: Abya Yala; Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2013 [2.ª ed.])
Mahecha, Dany; Franky C., Carlos Eduardo (eds.) (2012), Pueblos Indígenas en Aislamiento Voluntario y Contacto Inicial. Copenhague, Dinamarca: Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, IWGIA; Pamplona, Espanha: Instituto de Promoción de Estudios Sociales, IPES.

 

Lino João de Oliveira Neves, antropólogo-indigenista, com trabalho direto desde 1979 com os povos indígenas na Amazônia, em particular na Amazônia brasileira. Professor no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas, Brasil. Mestrado em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, Doutorado em Sociologia, pela Universidade de Coimbra, Portugal.

 

Como citar

Oliveira Neves, Lino João de (2019), "Povos indígenas isolados", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=24492. ISBN: 978-989-8847-08-9