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Autoridades Tradicionais

Maria Paula Meneses
Publicado em 2019-04-01

Nas últimas décadas, a ideia de ‘povos indígenas’ e ‘autoridades tradicionais’ adquiriu um carácter novo, com dimensões globais. A relação entre o Estado e estas autoridades é um tema que marca o panorama político africano. A questão que se coloca não é sobre se existe ou não uma ‘autoridade’ política que representa determinado agrupamento étnico, mas sim o espaço e a construção social desta autoridade, e as implicações da sua presença no marco do Estado moderno. No caso específico das autoridades tradicionais, e do seu papel na administração e gestão local, importa procurar compreender as características desta forma de poder, e questionar se a mesma constitui uma oposição tradicional ao poder moderno do Estado.


Herdeiros de uma legitimidade histórica, o poder das autoridades tradicionais está estruturado de acordo com normas consuetudinárias, derivadas da comunidade (Meneses, 2009). Ou seja, a legitimidade da autoridade tradicional é garantida por aqueles que governam segundo normas que não as do Estado moderno, o que explica a dinâmica e a força destas autoridades. Com efeito, em grande parte do continente africano as autoridades tradicionais são uma parte importante do poder local, desempenhando um papel relevante na reprodução social, ao garantir a ordem e a representação da sociedade.


Esta realidade é criticada por muitos, para quem a sobrevivência destas autoridades é vista como um sinal preocupante de uma fraqueza da governação, especialmente no caso das jovens democracias. Outros argumentam ainda que as lideranças tradicionais na maioria dos casos não são eleitas, exercendo o poder porque controlam terras e/ou outros recursos valiosos, situação que potencia situações de abuso de autoridade. Por exemplo, para Mahmood Mamdani (1996) as autoridades tradicionais surgem como instrumentos das potências europeias durante a época colonial, mantendo ainda hoje uma relação promíscua com as autoridades centrais. Esta crítica desvela o carácter negociado da presença destas autoridades no moderno projeto colonial europeu que se instala no continente africano a partir da segunda metade do século XIX. Na maioria dos impérios europeus, as chefias tradicionais vão ser integradas na base dos aparelhos administrativos coloniais, mesmo que estes tivessem subvertido o seu processo de escolha e a sua base territorial, funcionando as autoridades tradicionais como intermediárias entre as populações e a administração colonial (Meneses, 2006, 2009). A desqualificação destas autoridades pelos regimes coloniais trouxe consigo a transformação do africano no ‘indígena’, sujeito a uma justiça costumeira, dando azo à emergência de um regime de administração indireta do território, articulando este projeto dual com uma política racial, onde os cidadãos, maioritariamente oriundos da metrópole, eram os únicos sujeitos de direitos.


Porém, fruto da sua dinâmica e capacidade administrativa, as autoridades tradicionais (de referir que muitas são criadas ou impostas pelo poder colonial) vão desfrutar, quer em contextos coloniais, quer já em países independentes, de legitimidade popular, continuando a desempenhar um papel importante na resolução de conflitos a nível local, na atribuição de terras aos membros da comunidade, na administração local, etc. De realçar igualmente que embora as instituições tradicionais sejam comumente assumidas como desfavoráveis aos interesses das mulheres, quer homens quer mulheres dialogam e trabalham com estas lideranças. Mas a mancha da sua colaboração com o regime colonial vai perseguir estas autoridades. Vários governos independentes vão mesmo apoiar políticas que desafiavam a continuidade destas autoridades, como foi o caso de Moçambique ou da Tanzânia. Nestes países a aposta num projeto unificado de Estado-nação foi visto como central para a desejada transformação social, projeto onde as autoridades tradicionais, pelas funções de governação de proximidade, eram vistas como potenciais fontes de dissensão.


Hoje, e face ao mosaico de instâncias de poder local presentes quer em ambiente urbano, quer rural, é impossível aceitar a autoridade tradicional como um corpus único e homogéneo, assim como não é única a relação entre o Estado e estas autoridades, relação capturada na sua essência pela análise de Boaventura de Sousa Santos (2006), para quem esta relação dá origem a Estados heterogéneos. As tensões associadas à transformação do Estado, e as reações das comunidades à administração das suas regiões de acordo com as suas necessidades, tem vindo a produzir várias estruturas híbridas de controlo social, cujo historial merece uma análise detalhada, ao permitir investigar a reinvenção do poder tradicional. Longe de uma concorrência entre o governo central e as autoridades tradicionais, o reconhecimento é mútuo, corroborando para um reforço mútuo da legitimidade popular das instituições em presença.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Mamdani, Mahmood (1996), Citizen and Subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: Princeton University Press.
Meneses, Maria Paula (2006), “Traditional Authorities in Mozambique: between legitimisation and legitimacy”, in Manfred Hinz (org.), The Shade of New Leaves: Governance in Traditional Authority – a Southern African Perspective. Berlin: Lit Verlag, 93-119.
Meneses, Maria Paula (2009), “Poderes, direitos e cidadania: o ‘retorno’ das autoridades tradicionais em Moçambique”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 87, 9-42.
Santos, Boaventura de Sousa (2006), “The Heterogeneous State and Legal Pluralism in Mozambique”, Law & Society Review, 40(1), 39-75.

 

Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito. É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia).

 

Como citar

Meneses, Maria Paula (2019), "Autoridades Tradicionais", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=24608. ISBN: 978-989-8847-08-9