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Maria Irene Ramalho

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Pluralismo Jurídico

Sara Araújo
Publicado em 2019-06-13

O termo pluralismo jurídico foi cunhado nos anos 1970, mas já no início do século XX, o conceito de direito vivo, desenvolvido por Eugen Ehrlich, desafiava o que, um texto seminal de John Griffiths, publicado nos anos 1980, viria a designar por ideologia do centralismo jurídico, isto é, a convicção de que a produção e a administração do direito são monopólio do estado. No referido artigo, Griffiths afirmava perentoriamente que o pluralismo jurídico é o facto e o centralismo jurídico um mito, uma ilusão.


O reconhecimento e a disseminação do conceito de pluralismo jurídico devem muito à antropologia e à sociologia do direito, que lhe acrescentaram uma dimensão empírica, identificando e descrevendo a coabitação de múltiplos sistemas jurídicos, primeiro, em contextos coloniais e pós coloniais e, mais tarde, em sociedades industrializadas no Norte; numa primeira fase, concebendo como estáticas e paralelas as diferentes ordens jurídicas, vindo a reconhecer, posteriormente, a omnipresença de uma dimensão dinâmica. O pluralismo jurídico refere-se a ordens jurídicas que não só coexistem, como interagem. As paisagens da justiça são caleidoscópicas e marcadas, com maior ou menor intensidade, por aquilo a que Boaventura de Sousa Santos chamou interlegalidade. Os híbridos jurídicos são, pois, frequentes e podem invadir a esfera do Estado, dando lugar a situações que, na teoria do referido autor, edificam um Estado heterogéneo.


O direito moderno foi constituído de modo compatível com os interesses do projeto capitalista e eurocêntrico. À imagem da ciência, a sua alegada universalidade assenta num etnocentrismo epistemológico imposto por via da colonialidade jurídica. Se a primeira é responsável pelo epistemicídio, a conceção moderna de direito legitimou o juricídio. O conceito de pluralismo jurídico tem, pois, lugar na descolonização do pensamento jurídico enquanto instrumento de provincialização do direito moderno e de ampliação dos mapas da imaginação jurídica e política.


Ainda que Boaventura de Sousa Santos tenha desenvolvido os principais conceitos das Epistemologias do Sul num momento posterior ao trabalho sobre o pluralismo jurídico, muito do que vem a ser sistematizado na sua proposta epistemológica encontrava-se nos seus trabalhos dos anos 1970 e 1980. Na divisão entre o direito de Pasárgada e o direito do asfalto, que abordou na sua tese de doutoramento, avistamos o que, décadas mais tarde, viria a ser formulado como linha abissal. Já nessa altura, esta não era apenas uma questão teórica e analítica, era um problema epistemológico: qual a validade do conhecimento que define como não direito o que é valido enquanto tal para vastas camadas da população?


A relação entre o pluralismo jurídico e a descolonização do pensamento jurídico não é inequívoca. Questionar o centralismo jurídico é insuficiente quando o cânone jurídico moderno continua a servir de padrão e a pluralidade do mundo é homogeneizada no polo negativo das dicotomias modernas: local, primitivo, informal, não-estatal, tradicional. As trajetórias dos processos políticos de reconhecimento da pluralidade jurídica são heterogéneas, mas podem ser agrupadas em dois tipos movimentos: de um lado, encontram-se os processos de reconhecimento impostos de cima para baixo, que envolvem um conjunto de conceitos compatíveis com o pensamento linear e a ideia de progresso, como políticas de desenvolvimento, eficácia, agências doadoras, reforma do setor, capacitação, medição de impacto ou pobreza; do outro, os processos de refundação do Estado protagonizados pelos excluídos e seus aliados, com o objetivo de expandir o campo do político para além horizonte liberal.


O primeiro, presente em políticas do Banco Mundial e outras organizações internacionais, mimetiza traços do modelo colonial do governo indireto, que assentava no reconhecimento e na instrumentalização da legitimidade das instituições locais conquistadas e separava cidadãos com direitos e indígenas sem cidadania. O segundo inclui as reformas constitucionais que ocorreram no Equador e na Bolívia e foi descrito por Boaventura de Sousa Santos como embrião de transformação paradigmática do Estado moderno.


A temática do pluralismo jurídico não se esgota nas escalas nacional e local. Ambos os casos de reconhecimento do pluralismo jurídico - a partir de cima ou a partir de baixo – devem ser enquadrados no contexto do pluralismo jurídico global, cujo estudo inclui para além das ordens locais e estatais, a escala global do direito, onde cabe hard law e soft law, direitos humanos e lex mercatória. No presente, o pluralismo jurídico global é fortemente marcado pela internacionalização do neoliberalismo e pela maior facilidade de reconhecimento das ordens jurídicas quando compatíveis com o projeto neoliberal. Isto não significa que o Estado esteja a perder relevância, mas que existe pressão para que seja regulado de acordo com a lógica do mercado.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Araújo, Sara (2016), "O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone", Sociologias, 43 (18), 88-115.
Higuera, Libardo Ariza & Maldonado, Daniel Bonilla (org.) (2007), Pluralismo Jurídico. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad de los Andes, Pontifícia Universidad Javeriana.
Santos, Boaventura de Sousa (2002), Towards a New Legal Common Sense. London: Butterwords.


Sara Araújo é investigadora do CES. Doutorou-se em sociologia do direito, com uma tese sobre pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul. Fez parte da equipa de coordenação do Projeto Alice – Espelhos Estranhos Lições Imprevistas, hoje transformado em Programa de Investigação em Epistemologias do Sul.

 

Como citar

Araújo, Sara (2019), "Pluralismo Jurídico", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=2&entry=25644. ISBN: 978-989-8847-08-9