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Direito à Saúde

Fernando Ferreira Carneiro, Vanira Pessoa
Publicado em 2019-04-01

O direito à saúde implica o reconhecimento dos sentidos e significados do que é saúde humana. Outro aspecto a ser considerado é que a base de legitimação do poder capitalista na sociedade foi e é a ideologia da privatização dos recursos coletivos e naturais para assegurar uma acumulação material crescente e incessante. A crença na acumulação ilimitada e necessária de bens e serviços estimulou hábitos e valores, que canalizam as emoções e os sonhos humanos para a atividade do consumo imediato, que ajudam a anestesiar a experiência de si mesmo. Nos contextos atuais, os modernos sistemas de saúde são o resultado da complexa interação de processos econômicos, políticos e sociais, e organizam diversas dimensões da saúde. Esse processo tem relação com o indevido uso técnico das energias sociais, que tem gerado reações políticas, morais e culturais importantes, que questionam os privilégios de direitos privados e da acumulação incessante e liberam o valor dos direitos coletivos e comunitários e de uma vida comum mais pacífica e ecologicamente adequada (Martins, 2014).

 

Os direitos humanos na saúde, explicitam a necessidade de apreciação entre os universos intersubjetivos e interobjetivos da vida social, repensando a política do viver a vida como produção cultural e mística de uma sociedade no plano macro, mas, igualmente, como expressão da luta interior de cada ser humano, para assegurar seu cuidado pessoal e a garantia existencial dos seus próximos, no plano micro. Vislumbrar a saúde nas interfaces do objetivo e do subjetivo oferece duas possibilidades: a) a discussão institucional da saúde, relacionada aos temas práticos como: programas de saúde, trabalho profissional, inovações técnicas, financiamentos, entre outros;  b) a relação com o entendimento fenomenológico e epistemológico dos sentidos da saúde e da doença, dos sentimentos que regem os cuidados, das emoções humanas a respeito do corpo e do viver. Esse aprofundamento tem um caráter duplamente hermenêutico entre as razões do interobjetivo e do intersubjetivo. Auxilia a transitar da visão preconceituosa da sociedade que limita a vida a um sistema mecânico para um entendimento integral da vida, que valorize a experiência reflexiva e sensível como ponto de partida central para ritualizar a convivência social (Martins, 2014).

 

Compreender o direito à saúde requer uma associação às mudanças nos saberes sobre a saúde e nas práticas científicas e de profissionais neste campo. Faz-se necessário perceber a emergência de uma diversidade de formas de governar a vida (biopoder), de reconfigurar relações sociais, a partir de afinidades ou partilhas de características associadas à biologia (biossocialidade) e da constituição da “vida em si mesma” como fonte de valor e de acumulação de capital (Nunes, 2009).

 

A saúde como direito, remete ao espaço estrutural da cidadania, enquanto a saúde como bem econômico e como acumulação de capital se desloca para constelações entre o espaço do mercado e da produção. Reforça-se que essas dimensões se situam em espaços estruturais distintos, interdependentes e autônomos. Assinala-se que as possíveis formas conflituosas traduzem a disputa de diferentes projetos de sociedade em curso, reconhecendo que na democracia liberal hegemônica há o encobrimento, o controle e a despolitização dos movimentos coletivos contra hegemônicos (Freitas e Porto, 2011).

 

O direito à saúde, portanto, está além do domínio estreito do direito situando-se num terreno distinto, marcado por controvérsias, lutas e derivas que não passam pelo domínio do direito da saúde: o da consagração da saúde como um direito fundamental, ou um dos direitos humanos, referido no artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Nunes, 2009). Um deslocamento do sentido institucionalista tradicional do que seja saúde para outro referencial epistêmico que amplia o horizonte utópico do humano pode ser possível na metáfora do Bien Vivir boliviano, que amplia o significado da Natureza Humana, contribuindo para reintegrar o ecohumano, gerando um entendimento ampliado da vida, abrindo perspectivas originais para um novo olhar sobre a saúde pública. É importante que os indivíduos e grupos sociais se sintam motivados para viver juntos e fazer política solidária em função do bem comunitário, a construir um corpo prazeroso na produção da vida e na celebração do viver. Valorizar politicamente o direito à vida, não a reduzindo a uma questão meramente biológica, consiste num primeiro passo para avançar nas lutas democráticas na saúde (Martins; 2014).

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Freitas, J; Porto, M. F., (2011), "Por uma epistemologia emancipatória da promoção da saúde", Trab. Educ. Saúde, Vol. 9(2): 179-200.

Martins, P. H. (2014), “Bien Vivir, uma metáfora que libera a experiência sensível dos Direitos Coletivos na Saúde”, Revista Latinoamericana de Estudios sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, n°16, Año 6: 12-23.

Nunes, J. A. (2009), “Saúde, direito à saúde e justiça sanitária”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 87: 143-169.

 


Fernando Ferreira Carneiro é biólogo, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz do Ceará, pós Doutor em Sociologia pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador do Observatório sobre Saúde do Campo, da Floresta e das Águas -Teia de Ecologia de Saberes.

 

Vanira Matos Pessoa, enfermeira, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz do Ceará, Doutora em Saúde Coletiva. Atua nos temas da Saúde da Família-Ambiente-Trabalho e Pesquisa Ação. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Saúde do Campo, da Floresta e das Águas no contexto da Ecologia de Saberes.

 

 

Como citar

Carneiro, Fernando Ferreira; Pessoa, Vanira (2019), "Direito à Saúde", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24260. ISBN: 978-989-8847-08-9