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Educação Popular

Erick Morris
Publicado em 2019-04-01

Qual a necessidade de uma educação popular? Por que temos que adjetivar um processo que deveria contemplar a todos? Não bastaria falarmos de educação? Ao adotarmos a definição de popular, carregamos de sentido a nossa escolha por uma educação que não se contenta com o modelo hegemônico, por este ser excludente e antipopular. Modelo este não só constituído de silêncio político, num sentido mais estrito do termo, mas de um “epistemicídio”, calando diferentes formas de se compreender o mundo e de se produzir conhecimentos. A perspectiva da educação popular busca romper o silenciamento imposto por uma dominação bastante complexa, que perdura por séculos, embora metaformoseando-se de diferentes maneiras. Trata-se, portanto, de uma opção transformadora da realidade e emancipadora dos grupos subalternizados ao longo da história.

 

Baseada no diálogo crítico, no contexto sócio-cultural, nos saberes prévios das pessoas e em princípios de horizontalidade, é impossível entender a educação popular sem perceber que é a construção de uma teoria do conhecimento do seu tempo e em constante transformação. Portanto, faz-se necessário compreender um pouco do seu contexto social de origem. Na América Latina, a educação popular tem uma longa e diversa tradição, cujas origens remontam aos movimentos de resistência à ocupação europeia e à luta pela independência política, ganhando consistência em meados dos anos 1950-1960. Influenciada pelas inúmeras experiências de comunidades de base vinculadas à Teologia da Libertação e aos grupos de alfabetização de adultos, além das Revoluções Cubana e Sandinista, o período foi marcado por vários processos emancipatórios e participativos articulados em várias partes do continente.

 

Embora seja um processo bastante coletivo, com expoentes, práticas e origens em diversas partes para além da América Latina, tais como Myles Horton, Ivan Illich dentre outros, dois grandes pensadores latinoamericanos se destacam na formação teórico-política da educação popular e continuam incontornáveis para tratarmos do tema: Paulo Freire (1921-1997) e Orlando Fals Borda (1925-2008). No contexto brasileiro, Paulo Freire começa a ganhar destaque e a desenvolver suas propostas de uma educação libertadora, por meio dos processos de alfabetização de adultos no nordeste brasileiro, contextualizados com a realidade dos/as educandos/as em uma ação altamente política. A prática e a metodologia utilizadas por Freire na campanha nacional de alfabetização no governo de João Goulart (1961-64) e sua principal obra, A Pedagogia do Oprimido (1970), tiveram grande impacto na conotação emancipadora que o conceito de educação popular passou a carregar. Longe de propor um método de educação popular, o que Freire propôs foi uma concepção nova de educação.

 

É importante ressaltar que, com o exílio após o golpe militar de 1964, Paulo Freire passa a percorrer diversas partes do mundo e a conviver com as mais variadas experiências político-educativas que vão aprofundar sua visão e práxis educativa, sobretudo na imersão com as lutas anticoloniais e de independência em África. Nesse cenário, vale destacar que a influência de Amílcar Cabral a partir de suas vivências em Guiné-Bissáu e Cabo Verde e a sua aproximação com o marxismo e com o socialismo africano, tem um profundo impacto nos contextos multilinguísticos no seu pensamento. Estas experiências foram responsáveis por conferir uma maior politização da obra freiriana (Romão e Gadotti, 2012). Assim, a educação popular ganha cada vez mais contornos sociais e de construção coletiva na superação da dicotomia opressor-oprimido.

 

No caso do pesquisador colombiano, Orlando Fals Borda foi um dos principais sistematizadores/as da metodologia investigação-ação participativa, que une propostas de educação popular com elementos mais acadêmicos de pesquisa, visando uma transformação social a partir do empoderamento epistemológico dos grupos marginalizados socialmente. Nos anos 1960 foi bastante influenciado pelo pensamento e prática do padre guerrilheiro Camilo Torres Restrepo, que promovia o diálogo entre marxismo e cristianismo, fundando juntos uma das primeiras faculdades de sociologia da América Latina, em Bogotá, em 1959. Fals Borda continua tendo um profundo impacto na metodologia sociológica latino-americana e nos esforços para a descolonização da universidade ao buscar a aproximação desta com a sociedade.

 

Desde o período de sua formação, a educação popular teve um longo percurso e sofreu diversas mudanças que contribuíram para a construção de movimentos sociais e de sociedades mais democráticas na América Latina, África e também com experiências no Norte global, inclusive com experiências alfabetizadoras em Portugal após a Revolução de 25 de Abril. Nessa trajetória, conquistou espaços na educação escolar, numa tentativa de elaborar uma educação pública emancipatória, mas parte desse sucesso resultou em efeitos imprevistos. A burocratização e a estagnação da força pulsante dessas experiências juntas com o avanço do neoliberalismo e do neodesenvolvimentismo colocaram em crise essa proposta educativa transformadora que tinha como principais referências as disputas de classes sociais.

 

Atualmente, muitos grupos tentam reinventar o legado da educação popular, buscando uma luta mais ampla e inclusiva, capaz de traçar novos percursos a partir da autonomia e de redes solidárias e colaborativas,  como a Universidade Popular dos Movimentos Sociais, que busca articular diferentes saberes (popular, militante, artístico e acadêmico) num processo de tradução intercultural. Outro exemplo significativo é o grupo feminista argentino Pañuelos em Rebeldía, que aporta com a construção de uma educação popular feminista baseada em “emancipação integral, múltipla, complexa, dialética, alegre, colorida, diversa, ruidosa, desafiante, libertária, ética, polifônica, insubmissa, rebelde, pessoal, coletiva, solidária, desafiante” (Korol, 2007: 2).

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Iglesias, Roberto “Tato” (2014), Un Viaje Hacia la Autonomía: Un recorrido sobre los conceptos y procesos de organización desde la educación popular em Argentina, Río Cuarto: Unirío.

Korol, Cláudia (org.) (2007), Hacia una Pedagogía Feminista: generos y educación popular, Buenos Aires: El Colectivo, América Libre.

Romão, José Eustáquio; Gadotti, Moacir (2012), Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes, São Paulo: Editora Instituto Paulo Freire.

Santos, Boaventura de Sousa (2016), “Master Class #5: Para que serve a educação? A Educação Popular e/na Universidade”, in Projeto Alice. https://www.youtube.com/watch?v=A4K6DJ-p9Q4

 


Erick Morris, Doutorando em Pós-Colonialismos e Cidadania Global (CES/FEUC). Pesquisa educação popular na América Latina, universidades populares, movimentos sociais e epistemologias do Sul. É membro do grupo de investigação Curupiras - Colonidades e Outras Epistemologias (Brasil) e faz parte do conselho editorial da Revista del Cisen Tramas/Maepova (Argentina).

 

 

Como citar

Morris, Erick (2019), "Educação Popular", Dicionário Alice. Consultado a 19.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24274. ISBN: 978-989-8847-08-9