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Acesso ao Direito e à Justiça

Patrícia Branco
Publicado em 2019-04-01

O acesso ao direito e à justiça é uma das questões que mais tem sido debatida desde o final da Segunda Guerra Mundial. Continua a ser difícil encontrar uma definição e existe uma variedade de interpretações e de abordagens, da ciência jurídica à ciência política, da antropologia à sociologia do direito. Existem no seio destas várias interpretações alguns consensos: 1) a identificação de acesso ao direito e à justiça com a necessidade de resolver conflitos; 2) a identificação com mecanismos que permitam essa resolução, que a maior parte das vezes passa pelos tribunais ou por instâncias alternativas aos tribunais; 3) os obstáculos ao acesso, sobretudo de natureza económica (custo) e estrutural (ineficiência, morosidade e falta de meios); 4) a necessidade de reformas (legislativas e organizativas) e de políticas públicas para obviar aos obstáculos; e 5) a necessidade de reformar as reformas e as políticas (Robles, 2010; Bassil, 2010).


O acesso à justiça é isso. É ter a possibilidade económica de pagar os vários custos que a resolução de um conflito acarreta. É resolver o conflito através do meio mais adequado. É ter o conflito resolvido ao invés de o ver prescrever porque faltam magistradas/os, porque os processos se perdem nos meandros institucionais, porque os tribunais não têm salas de audiências e se adiam diligências. Aceder à justiça é ultrapassar a metáfora da justiça kafkiana: é bater à porta, esta abrir-se e poder entrar, não se perder no caminho, e voltar a sair.
Mas o acesso à justiça é mais do que isto. É mais do que resolver o conflito, e é mais do que resolver o conflito de forma pacífica, pois os problemas que levaram ao conflito continuarão, possivelmente, por resolver.


Falamos de um direito fundamental que não cabe, pela sua imensidão, apenas nas Constituições ou em outros documentos jurídicos fortes, como os tratados e as convenções internacionais. É um direito que garante todos os outros direitos, é a porta que abre outras portas: educação, saúde, trabalho, moradia, comida, entre outros direitos. É um direito que 1) permite identificar e denunciar as opressões, que 2) garante formas de resistência e 3) de criação, recriação e negociação de alternativas que conduzam à emancipação social. É um direito das pessoas e da natureza, e das suas relações múltiplas. Podemos falar, pois, de acessos às justiças, o que não significa falar de acessos diferenciados ou de justiças de primeira ou de segunda, mas sim reconhecer que existe uma pluralidade de sujeitos, de necessidades e de modos de luta, a jusante e a montante de um hipotético conflito ou questão jurídica.


O acesso ao direito e à justiça contém uma dimensão pré-necessária: é preciso saber que há portas, é preciso saber onde elas ficam (a dimensão geográfica aqui também é muito importante), e é preciso que estejam e se mantenham abertas. A questão aqui não é a de um mero encaminhamento, refere-se a um real empoderamento. Há que proceder de acordo com o que pode definir, parafraseando Santos (2018), uma sociologia do direito de acesso à justiça das ausências: tornar os sujeitos ausentes, com as suas necessidades, em sujeitos presentes, capazes de identificar não só as opressões sociais, os conflitos estruturais e individuais, mas também os direitos e as formas de os fazer valer e alcançar. Não se trata de aceder a uma justiça de redistribuição, que muitas vezes trata os sujeitos como intrusos, mas sim a uma justiça de reconhecimento (Ferraz et al., 2017), que atende, que ouve, que entende, que trata com dignidade e que reconhece os sujeitos e valoriza as suas lutas.
O direito de acesso ao direito e à justiça é, afinal, um direito ao conhecimento, à participação, à resistência, a ter respostas.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Bassil, Sonia Boueiri (2010), “El acceso a la justicia en Latinoamérica desde las perspectivas democracia, desarollo, liberación”, in Sonia Boueiri Bassil (ed.), El acceso a la justicia: contribuciones teórico-empíricas en y desde países latinoamericanos. Madrid: Editorial Dykinson, 173-194.
Ferraz, Leslie Shérida et al. (2017), “Repensando o acesso à Justiça: velhos problemas, novos desafios”, Revista de Estudos Empíricos em Direito, 4(3), 174-212.
Robles, Diego Américo (2010), “El concepto de acceso a la justicia: evolución, vigencia e actualidad”, in Sonia Boueiri Bassil (ed.), El acceso a la justicia: contribuciones teórico-empíricas en y desde países latinoamericanos. Madrid: Editorial Dykinson, 27-48.
Santos, Boaventura de Sousa (2018), The End of the Cognitive Empire: The coming of age of Epistemologies of the South. Durham: Duke University Press.

 

Patrícia Branco é doutorada em «Direito, Justiça e Cidadania no séc. XXI», e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus temas de pesquisa centram-se no acesso ao direito e à justiça, arquitetura judiciária, direito e humanidades, mutações do direito da família e crianças e questões de género.

 

Como citar

Branco, Patrícia (2019), "Acesso ao Direito e à Justiça", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24425. ISBN: 978-989-8847-08-9