Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Destacado Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Destacado Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Pessoa

Karen Worcman, Lucas Ferreira de Lara, Rosali Maria Nunes Henriques
Publicado em 2019-04-01

“Nunca existiu um ser humano que não tenha consciência de seu corpo mas também de sua individualidade, tanto espiritual quanto física” (Mauss, 1985: 3). Nesta colocação Marcel Mauss explícita o que entende ser universal para definir o conceito de pessoa ainda que não dispense o cuidado necessário para identificar as perspectivas culturais, históricas, sociais, jurídicas, filosóficas, religiosas, biológicas, psicológicas e cognitivas intrínsecas às compreensões do que entendemos por uma pessoa.


De início, é necessário reconhecer que não existe uma abordagem única deste termo. Podemos ressaltar, por um lado, a existência de um conceito adotado por um grande número de sociedades que entende a pessoa como uma persona, um personagem, que cumpre um papel simbólico específico seja em seu grupo social (como resultado de sua herança ancestral combinada com o papel que esta ancestralidade cumpre para dar coesão e sentido ao grupo) seja no seio de sua família e; por outro lado, nos defrontamos com uma definição que entende a pessoa como sendo um único ser, racional e indivisível (idem: 20). Podemos acrescentar, ainda, duas outras abordagens importantes: a político social que entende a pessoa como sendo aquela que possui direitos (idem: 16); e aquela que investiga a pessoa em sua complexidade interior (psicológica e espiritual).


Soma-se a estas abordagens a premissa de que toda a pessoa tem a capacidade cognitiva de registrar suas experiências e constituir sua memória a partir da qual articula suas narrativas pessoais. Esta capacidade, dentre outras características biológicas, é o que nos torna humanos. Cada indivíduo, por sua vez, nasce em determinado local, com culturas diferentes, de tradições diferentes, que determinam especificidades na forma como organiza suas memórias e narrativas. Ou seja, a forma como selecionamos nossas vivências e memórias, inclusive as narrativas que somos capazes de produzir a partir delas, são histórica, econômica e culturalmente estabelecidas. No entanto, mesmo em sociedades cujo conceito de eu está intimamente conectado ao conceito de nós, como, por exemplo, em uma comunidade indígena no interior do Brasil, cada ser humano ali presente conta sua história de forma específica, porque assimilou os elementos culturais de um modo singular. Neste sentido, poderíamos definir que o conceito de pessoa reside justamente na singularidade da forma como cada indivíduo articula sua própria experiência e cria, a partir disso, uma narrativa única. Sendo assim, temos o nível humano, que iguala a todos nós graças a uma capacidade cognitiva, biológica; em seguida temos os elementos culturais e sociais que determinam especificidades na forma como organizamos o conhecimento adquirido; e, por fim, temos a singularidade da forma como cada indivíduo, mesmo dentro de um mesmo grupo, organiza e articula sua narrativa.


Acrescentemos ainda a capacidade que cada pessoa tem de criar uma reflexão sobre suas experiências. Dois pescadores de uma mesma vila no litoral da Bahia, por exemplo, que conhecerão a tábua das marés, as espécies de peixes locais, as melhores épocas para a pesca terão reflexões diferentes sobre o que viveram. É no âmbito da reflexão, que reside a maior das singularidades: o que aprendemos a partir daquilo que vivemos?


Quando conectamos conceitos de pessoa, memória e narrativa estamos, de fato, falando sobre a “criação de sentidos”. No livro Em busca do Sentido, Victor Frankl afirma que não é o que vivemos que determina o modo como vamos experienciar nosso presente e nosso futuro, mas é o sentido dado ao que vivemos o que importa. Em suas próprias palavras: “Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência, mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido.” (Frankl, 2008: 129).


É a nossa demanda dar sentido ao que nos torna humanos. Narrar e dar sentido a própria vida é certamente um traço que define, de forma universal, toda e qualquer pessoa. Este traço é o que possibilita que cada pessoa se torne portadora de um saber coletivo, ainda que singular. O reconhecimento deste saber como sendo um valor faz com que cada pessoa, independente de sua raça, credo, cultura e classe social, possa vir a ser reconhecida como patrimônio de toda humanidade.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Carrithers, Michael; Collins, Steven; Lukes, Steven (eds.) (1985), The category of the person. Anthropology, philosophy, history. Cambridge: Cambridge University Press.
Frankl, Viktor (2008), Em Busca de Sentido. São Leopoldo: Sinodal: Petrópolis: Vozes. [25.ª ed.]
Mauss, Marcel (1985), “A category of the human mind: the notion of person; the notion of self”, in Michael Carrithers, Steven Collins, Steven Lukes (eds.), The category of the person. Anthropology, philosophy, history. Cambridge: Cambridge University Press, 1-25.
Sutton, John; Harris, Celia. B.; Barnier, Amanda (2010), “Memory and Cognition”, in Susannah Radstone, Bill Schwarz (eds.), Memory: histories, theories, debates. New York: Fordham University Press, 209-226.

 

Karen Worcman é fundadora e presidente do Museu da Pessoa. Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda no Diversitas – núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da Universidade de São Paulo. Co-autora do Social Memory Tecnhology: Theory, Practice, Action (Routledge 2016).

 

Lucas Ferreira de Lara é Coordenador de Museologia no Museu da Pessoa. É Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (Brasil) e Gestor Cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do SESC - SP (Brasil).

 

Rosali Maria Nunes Henriques é mestre em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, doutorada em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, doutoranda em História pela Universidade Nova de Lisboa e pós-doutoranda pela Universidade de Coimbra.

 

Como citar

Worcman, Karen; Lara, Lucas Ferreira de; Henriques, Rosali Maria Nunes (2019), "Pessoa", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24480. ISBN: 978-989-8847-08-9