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Povo

Miguel Cardina
Publicado em 2019-04-01

O que é o povo? Frequentemente manejada na retórica político-eleitoral, a noção de povo é marcada por uma polissemia que se manifesta mesmo nos seus usos correntes. Em primeiro lugar, o conceito pode referir-se ao corpo social que compõe um dado Estado ou uma dada nação. Em segundo lugar, aponta para a ideia de um coletivo relativamente homogéneo em termos sociais, culturais, linguísticos ou religiosos. Por fim, o povo pode também ser entendido como sinónimo de plebe, um vasto corpo social que se poderia transformar em sujeito político por meio de processos de reconhecimento da sua especificidade social e cultural e de mecanismos de reivindicação dos seus interesses próprios.


Nesta última asserção, a noção de povo surge como contraponto aos estratos superiores da sociedade (plebe, massas ou proletariado versus nobreza, elites ou burguesia). Mais recentemente, outras designações vieram procurar dar conta dessa realidade: é o caso do conceito de “multidão”, a partir de uma reflexão crítica das construções identitárias de classe e povo (nas formulações de Paolo Virno, Antonio Negri e Michael Hardt, ou Álvaro García Linera, entre outros); a ideia de “casta”, avançada atualmente pelo partido espanhol Podemos, e que sinalizaria a existência de uma nova oligarquia, definida por uma circulação entre poder político e poder económico-financeiro criadora de situações de privilégio e de diferença de estatuto relativamente ao cidadão comum; ou ainda a evocação dos 99% (dos/as cidadãos/ãs), que um movimento como o norte-americano Occupy trouxe para a ribalta. No fundo, a pergunta “o que é o povo?” conduz-nos sempre a questionar quem faz ou não dele parte e que critérios devem ser usados para produzir esse gesto clarificador.


Presença estruturante no léxico ético-político desde a modernidade, o povo surge - na formulação de clássicos como Jean-Jacques Rousseau e na tradição ocidental que construiu os Estados modernos, a partir da Revolução Francesa - como dotado de um poder constituinte que acaba por se eclipsar no exato momento em que emerge: se o povo é o soberano, essa soberania é pensada, não como efetiva pertença sua, mas como um gesto de delegação ficcional – o contrato social – através do qual o Estado adquire a sua legitimidade. Mesmo em processos de reconfiguração política acionados durante o século XX – como os que resultaram, a partir da vaga anticolonial, na criação de novas nações no então chamado “Terceiro Mundo”– esta concepção genérica teve prevalência, num quadro em que as lutas de libertação eram feitas em nome do povo e pelo povo, e em que as novas nações ancoraram nesse sujeito ideal a sua legitimidade.


Ao saber crítico e às práticas políticas emancipatórias cabe resgatar uma ideia de povo que o entenda como um efetivo e processual construtor de soberania, através de mecanismos políticos que combinem democracia representativa com democracia participativa e por via dos quais o povo, enquanto realidade histórica e multiforme, se construa como sujeito coletivo. Na verdade, uma leitura do conceito de povo centrada na reificação de características pretensamente homogéneas corre o risco de fazer erodir a diferença e de desencadear lógicas de exclusão e de inferiorização. Pense-se, por exemplo, nos grupos sociais que foram relegados para as margens dos processos de constituição do Estado e da nação - como é o caso dos povos indígenas – ou nos migrantes indocumentados e na nova vaga de refugiados que - chegando à antiga metrópole europeia provenientes de África, da Ásia e do Médio Oriente – tendem a ser vistos pelos poderes conservadores como uma ameaça à estabilidade social e aos quadros culturais dominantes.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Dias, Bruno Peixe; Neves, José (coord.) (2010), A Política dos Muitos: Povo, Classes e Multidão. Lisboa: Tinta-da-China.
Santos, Boaventura de Sousa (2015), “Povo, populismo e democracia”, Aula magistral. http://alice.ces.uc.pt/en/index.php/homepage-posts/video-people-populism-and-democracy-master-classe-2015/?lang=pt

 

Miguel Cardina é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Coordenador do projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós-colonial, financiado pelo European Research Council (StG-ERC-715593).

 

Como citar

Cardina, Miguel (2019), "Povo", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24490. ISBN: 978-989-8847-08-9