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Reforma Agrária

Caetano de Carli
Publicado em 2019-04-01

A reforma agrária foi uma das formas mais efetivas de combate à pobreza e à desigualdade social no século XX. A ocorrência da reforma agrária é variada historicamente, mas pode-se notar dois extremos; enquanto ações de organizações camponesas e enquanto política pública. Entre esses dois extremos, há uma variedade de possibilidades de atuações simultâneas de movimentos sociais ou de políticas públicas que, de acordo com outros fatores econômicos, culturais, sociais e políticos, definem a realização da reforma agrária, o seu fracasso ou sua paralisação. Segundo Silva (1971), a demanda da reforma agrária emerge de acordo com uma soma de fatores que quase sempre envolve a soma da concentração fundiária com a pobreza no campo. Apesar dessas questões continuarem a ser cada dia mais presentes na vida das regiões rurais ao longo do globo, nota-se que o discurso da reforma agrária saiu da agenda política das universidades, do Estado, dos organismos internacionais e de organizações políticas progressistas. De uma das alternativas mais viáveis e concretas para uma vida melhor no campo durante o século XX, a reforma agrária passou a ser um discurso político quase abandonado no século XXI.


Até a década de 1970, se formou um senso comum em torno da reforma agrária como alternativa para acabar com a miséria no meio rural, mesmo que existissem sérias divergências na forma de operacionalizá-la. Entre os teóricos marxistas, por exemplo, havia um dilema entre o modelo de reforma agrária parcelar (Galesky e Chayanov) e o modelo de grande cooperativa estatal (Lenin e Kautsky) que inspirou as kolkhoses na URSS (Hespanha, 1986). Mesmo com essas divergências, o processo de internacionalização dos Partidos Comunistas e de outras organizações de esquerda (como a teologia da libertação) irradiaram a bandeira da reforma agrária para as populações pobres do campo, principalmente na Rússia (1917), China (1949), Cuba (1959), Chile (1971), Portugal (1974), Camboja (1975), Vietnã (1975), Nicarágua (1979), nos movimentos guerrilheiros na África do Sul, Peru, Colômbia, México e nas experiências das Ligas Camponesas (1955-1964) e do MST no Brasil. Por outro lado, grupos conservadores ligados à Igreja Católica e governos fascistas também adotaram um discurso sobre a necessidade de se realizar a reforma agrária. Na década de 1960, os Estados Unidos, na administração de Kennedy, executou um programa de apoio à reforma agrária na América Latina, a Aliança Para o Progresso. A ONU, por meio da CEPAL, também irá estabelecer a reforma agrária como a principal política pública para o desenvolvimento da região. Naquele momento, mesmo em um mundo polarizado, havia um senso comum em relação à reforma agrária (com exceção dos latifundiários). Atualmente, essa situação se inverteu, com a reforma agrária existindo apenas no discurso de alguns movimentos camponeses.


Isso pode ser explicado por dois fatores principais: 1) o que Santos (2007) determinou como o regresso do colonial, que se associa à negação do Estado, no neoliberalismo, em efetuar políticas emancipatórias; 2) a maior inserção de empresas transnacionais e do mercado financeiro no setor agropecuário que efetivamente conseguiu modernizar o campo, sem entretanto ter promovido melhorias sociais significativas. Esses fatores são acompanhados de alguns efeitos como: o aumento da fome, do preço dos alimentos, da desigualdade fundiária, do êxodo rural, do desmatamento, das tragédias ambientais e da contaminação de alimentos e do solo; o envelhecimento da população e a falta de oportunidades de trabalho e de lazer para os jovens do campo; a precariedade da saúde e da educação do campo; e a precarização do trabalho na agricultura, pecuária e atividades extrativistas (Stédile, 2014).


No século XXI, a tendência do capitalismo foi afirmar o campo como local de produção, em detrimento de local de vida. Em contraponto a isso, alguns movimentos vêm trabalhando para formatar novos sensos comuns em torno da questão agrária. O MST e a Via Campesina debatem atualmente o conceito de Reforma Agrária Popular, associando o direito à terra, com outros direitos como à saúde, à educação, aos direitos humanos, à cultura, etc. A demarcação das terras indígenas e quilombolas, e as populações atingidas por barragens e por tragédias ambientais também se inserem nessa luta. Além disso, outras pautas como a agroecologia e a educação do campo dialogam com o discurso da reforma agrária, em busca da utopia de que uma vida melhor no campo é possível.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Hespanha, Pedro (1986), “A distribuição de Terras a Pequenos Agricultores. Uma Política para “desproletarizar” a Reforma Agrária”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 18-19-20, 379-409.
Santos, Boaventura de Sousa (2007), "Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes", Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, 3-46.
Silva, José Gomes (1971), A Reforma Agrária no Brasil: Frustração Camponesa ou Instrumento de Desenvolvimento? Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Stédile, João Pedro (org.) (2014), A Questão Agrária no Brasil – volume 7: O debate na década de 2000. São Paulo: Expressão Popular.

 

Caetano De Carli é professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Garanhuns. Doutor em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB)).

 

Como citar

Carli, Caetano de (2019), "Reforma Agrária", Dicionário Alice. Consultado a 17.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24516. ISBN: 978-989-8847-08-9