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Teatro do Oprimido

José Soeiro
Publicado em 2019-04-01

O Teatro do Oprimido (TO) é um método político e teatral que nasceu no Brasil, na década de 1960. Atualmente centenas de grupos intervêm em movimentos sociais e organizações políticas, instituições educativas e de saúde, contextos prisionais ou comunitários, recorrendo ao Teatro do Oprimido. Multiplicam-se, por todo o mundo, coletivos, núcleos, oficinas, projetos, centros e encontros internacionais.


Descoberto e sistematizado pelo dramaturgo, encenador e ativista político Augusto Boal, este corpo de exercícios e técnicas parte do princípio de que o teatro é uma linguagem utilizada pelos indivíduos no seu quotidiano e que todos podem desenvolver: “toda a gente pode fazer teatro, até os atores”. O objetivo do TO é democratizar os meios de produção teatral, reconhecendo aos grupos oprimidos a sua capacidade criativa e o direito a representarem a sua realidade e desejos de transformação.


Contestando que o espaço estético deva ser monopólio de profissionais, no Teatro do Oprimido emerge a figura do espect-ator, que combina a capacidade de observação (do espectador) com a de agir sobre o que se observa. A divisão hierárquica entre público e atores e a ideia da arte como esfera social à parte são questionadas nos seus fundamentos. Desse modo, é colocada em causa a divisão de trabalho que, no teatro como na sociedade, confere a alguns o monopólio do pensamento, da ação e da palavra legítima, remetendo outros à passividade e ao silêncio. Propondo a apropriação pelos grupos subalternos dos meios de produção simbólica da realidade, o TO pressupõe que ninguém está confinado ao seu papel social. Cada corpo é simultaneamente lugar de dominação e de resistência, cada repetição é simultaneamente um ato de reprodução e a possibilidade do desvio. A capacidade de, em cena, representarmos outras ações e outros papéis, para além dos que são prescritos pelas estruturas de opressão, constitui uma prova concreta da possibilidade da emancipação.


O Teatro do Oprimido tem raízes heterogéneas. Encontram-se nas experiências de teatro popular da América Latina, em diferentes formas de agit-prop, nas técnicas de Stanislavsky, na dialética materialista do Teatro Épico de Brecht ou na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Mas os diferentes métodos do Teatro do Oprimido nasceram sobretudo como resposta criativa a problemas concretos.


A “árvore do TO” tem múltiplos ramos. Jogos e exercícios, desenhados para ativar os sentidos, desenvolver a expressividade e investigar a mecanização do corpo. Teatro Imagem, conjunto de técnicas não-verbais que recorrem ao corpo para esculpir imagens sobre temas, situações e emoções. Teatro Jornal, nascido como resposta à censura política da ditadura e no qual se revela o que é silenciado e manipulado pelos textos dos jornais, as palavras da rádio ou as imagens da televisão. Teatro Fórum, que dramatiza, problematizando-as, as histórias de opressão vivenciadas pelos grupos, chamando o público a romper a parede invisível que o separa da cena e a propor, tomando o lugar dos atores, outras formas de lidar com uma determinada situação. Teatro Invisível, que leva ao espaço público cenas teatrais que não se apresentam como tal, suscitando reações e debate em torno de um tema. Arco-íris do Desejo, conjunto de exercícios que analisam as opressões internalizadas, a incorporação dos esquemas e das categorias de pensamento dominantes (a “invasão dos cérebros e os “polícias na cabeça”, para utilizar termos de Boal), mas também as variações e contradições presentes nos desejos dos oprimidos. Teatro Legislativo, que utiliza todas as técnicas do TO para democratizar a ação política. Estética do Oprimido, que explora as potencialidades criativas de todos e a capacidade de, combinando sons, imagens e palavras, os oprimidos e oprimidas representarem metaforicamente a realidade que existe e a que desejam.


O Teatro do Oprimido não está imune à mercantilização, à recuperação institucional e à neutralização política. Mas tem recursos para lhes resistir. O TO é um modo de produção e partilha de conhecimento: parte das vivências de opressão e do saber dos subalternos, investiga as modalidades de dominação, é um espaço de expressão daqueles a quem a voz, a palavra e o gesto são normalmente confiscados. É uma arte de luta: representa esteticamente, com a linguagem do corpo, as estruturas e relações de poder, exercita modos de desinscrevê-las, ensaia formas concretas de combate-las. Aproxima-se de uma “sociologia das emergências”: procura no que existe os indícios que anunciam a possibilidade de ser diferente, as alianças em potência, as forças transformadoras que não encontraram ainda a sua forma exata. É um teatro no modo conjuntivo e sempre inacabado: explora hipóteses, imagina alternativas e completa-se fora do espaço estético, reclama a ação para além de si próprio, concebe-se como ensaio permanente e como um momento entre outros do trabalho dos oprimidos para a sua libertação.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Boal, Augusto (2005 [1985]), Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Boal, Augusto (2008), Jogos para Atores e não Atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Howe, Kelly; Boal, Julian e Soeiro, José (2019), The Routledge Companion to Theatre of the Oppressed. London: Routledge.

 

José Soeiro é sociólogo, doutorado pela Universidade de Coimbra. É deputado à Assembleia da República. Coordenou o projeto de Teatro Legislativo “Estudantes por Empréstimo” e é um dos organizadores do Óprima! – Encontro de Teatro do Oprimido e Ativismo.

 

Como citar

Soeiro, José (2019), "Teatro do Oprimido", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24558. ISBN: 978-989-8847-08-9