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Violência

Júlia Garraio
Publicado em 2019-04-01

A vastíssima investigação sobre o fenómeno da violência atesta desde logo que o conceito há muito extravasou o sentido da sua origem latina (violentus: que atua com força, impetuoso) para abranger uma miríade de manifestações para além do ato físico e sobretudo para se impor como questão fulcral na análise das relações de poder e das estruturas de criação, imposição, contestação e reconfiguração de ordens sociais. Entre os numerosos contributos para pensarmos a violência como pilar da estruturação social destacam-se os conceitos de violência estrutural e violência cultural, propostos por Johan Galtung. Enquanto o primeiro aponta para estruturas sociais como sexismo, racismo, nacionalismo, elitismo, entre muitas outras, que impendem o desenvolvimento pleno do ser humano e promovem a distribuição desigual dos recursos, o segundo refere-se aos aspetos das culturas, línguas, crenças e ideologias que naturalizam, legitimam e tornam socialmente aceitáveis essas formas de violência estrutural, inclusivamente por parte das suas vítimas.


Na realidade, qualquer análise de atos e expressões de violência revela que esta existe antes de tudo como parte de uma teia de significação, em que até a sua perceção como tal depende dos sentidos atribuídos pelos vários atores envolvidos no ato em si. Como tal, a violência é um fenómeno cultural apenas percetível quando analisado no contexto histórico-social em que ocorre ou sobre o qual influi. Daí que os esforços para banir a violência da ordem social desemboquem amiúde em discursos de distinção entre as formas de violência legítima e as de violência ilegítima. Hüppauf (1997) notou como as tentativas por parte dos filósofos do Iluminismo de desnaturalização da violência na ânsia de criação de sociedades pacíficas e alicerçadas no progresso e na razão sustentaram a legitimação da violência enquanto instrumento para a ação política. A consciencialização de que a modernidade não só se revelava incapaz de banir a violência, mas também dependia da própria violência para levar a cabo o seu projeto, é essencial, por um lado, para a sua transformação em instrumento da esfera política moralmente legitimada e, por outro, para a alterização do que se entendia por violência ilegítima, significada como marca de outras épocas, outros espaços culturais, outras ideologias e classes sociais. A violência progressista, que Hüppauf descortina em filósofos revolucionários desde o século XVII até ao século XX, acaba por convergir com esta importante genealogia de legitimação da violência em “prol do bem”, ou seja, da violência exercida ao serviço de uma causa considerada justa.


Esta centralidade da violência como sustentáculo na criação de novas ordens permite perceber como o projeto da modernidade pôde ser acompanhado de situações de violência massificada, nomeadamente na expansão colonial europeia e na imposição dos Estados modernos. Nesta linha, filósofos como Adorno, Horckheimer, Baumann, entre outros, chamaram a atenção para o erro que seria entender a Shoah como retorno à barbárie, argumentando que esse evento deveria ser lido como uma das possibilidades radicais da modernidade, como algo que apenas foi possível com recurso à racionalidade, à técnica e aos processos industriais do trabalho característicos da modernidade. Estas questões não afetam apenas a história macro, são percetíveis também nas esferas micro, inclusivamente na intimidade. Veja-se nesse sentido o trabalho de Mailänder (2015). Através da análise das histórias de vida das guardas do campo de concentração e extermínio de Majdanek, a historiadora aponta para o poder da violência na configuração das subjetividades dessas mulheres: a integração nas SS deu-lhes uma identidade corporativa e facultou-lhes a ascensão social, com a prática da violência genocida a surgir, não como resultado do antissemitismo, mas como instrumento na construção de uma identidade antissemita. Este caso, sinalizador das potencialidades performativas da violência e da sua naturalização através da prática, aponta para a necessidade de olharmos para os seus impactos a longo prazo. De facto, as sociedades pós-conflito tendem a perpetuar práticas de violência anteriores, caracterizando-se por estruturas de Estado impregnadas pelo uso da violência, enquanto a própria esfera íntima e privada costuma revelar níveis elevados de violência doméstica.


Em 1998, o escritor e ecologista alemão Carl Amery publicava o ensaio Hitler als Vorläufer: Auschwitz – der Beginn des 21. Jahrhunderts? [Hitler como percursor: Auschwitz – o início do século XXI?], onde alertava para o perigo de, perante a redução drástica de terras aráveis e espaços habitáveis, o princípio “selecionar quem deve viver” poder vir a ser praticado como “solução” para os problemas ambientais do planeta. Sendo uma tese provocatória, não deixa, porém, de apontar a ecologia como o provável cerne das irrupções de violência nas próximas décadas, com a antevisão de lutas implacáveis pelos recursos naturais, a xenofobia como resposta aos conflitos sociais e à desigualdade e a migração forçada de milhões de seres humanos vulnerárias às mais variadas formas de exploração e violência.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Hüppauf, Bernd (ed.) (1997), War, Violence, and the Modern Condition. Berlin/New York: De Gruyte.
Mailänder, Elissa (2015), Female SS Guards and Workaday Violence. The Majdanek Concentration Camp, 1942-1944. East Lansing: Michigan State University Press.
Ribeiro, António Sousa (org.) (2013), Representações da violência. Coimbra: Almedina.

 

Júlia Garraio é investigadora do Centro de Estudos Sociais, Coimbra. Doutorada em Literatura Alemã. Os seus atuais interesses de investigação incidem sobre violência sexual, masculinidades, feminismo, memória, nacionalismo, populismo, literatura comparada e media. É investigadora do projeto (De)Othering: Desconstruindo o Risco e a Alteridade (Referência: POCI-01-0145-FEDER-029997).

 

Como citar

Garraio, Júlia (2019), "Violência", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24582. ISBN: 978-989-8847-08-9