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Tradição

Tiago Pires Marques
Publicado em 2019-04-02

Para um certo senso-comum típico das sociedades ocidentais, a tradição é a parte da vida social – práticas, rituais, textos, imagens – que se transmite, de forma espontânea e mais ou menos imutável, de geração em geração. Nestas sociedades, a tradição é contraposta ao progresso, formando, com esta categoria, uma polaridade estruturante de imaginários político-sociais e epistémicos com forte impacto nas identidades e nas formas de ação. Nas sociedades que se pensam como “modernas”, a tradição é o polo negativo e o progresso o polo positivo. Em torno do polo da “tradição” agrupam-se as representações relativas ao passado, por oposição ao presente e ao futuro; ao coletivo, por oposição ao individual; e ao inconsciente e emocional, por oposição ao consciente e racional (Shils, 1981). A tradição surge, assim, como o outro da “Razão” do Iluminismo e da modernidade. 


Uma das mais graves consequências históricas desta polaridade tem consistido na legitimação do colonialismo e do neocolonialismo: as sociedades “modernas” teriam a missão histórica de levar o “progresso” às sociedades “tradicionais” (bárbaras, supersticiosas, atrasadas). À dinâmica tendente a substituir uma tradicionalidade suposta por uma ideia monolítica de modernidade, têm respondido, aquém e além das linhas abissais da colonização, movimentos identitários legitimados por tradições. Nas sociedades do Norte e da semi-periferia desestabilizadas pelos processos de modernização, estes movimentos deram origem a formas estatais e sociais de fascismo, fundamentalismos religiosos e a diversas formas de fechamento identitário. No Sul Global, têm surgido, igualmente, dinâmicas de rigidificação cultural e normativa, invocando a autoridade de uma “tradição” que se assume frequentemente como religiosa (Santos, 2014).


A crítica do par tradição/progresso conta-se, pois, entre as tarefas culturalmente mais significativas e politicamente mais urgentes das ciências sociais. Duas observações podem servir de ponto de partida para uma tal tarefa crítica. Em primeiro lugar, enquanto categoria, a tradição teve uma operacionalidade muito limitada nas sociedades que os “modernos” chamaram tradicionais. Pelo contrário, foi nas sociedades que se conceberam como modernas que o conceito se consolidou nos vários campos da vida social. Se a tradição, enquanto forma de existência residual do passado, deveria ser rejeitada, tornou-se fundamental dispor de “tradições” para dar coesão a uma sociedade em rápida transformação e para legitimar os poderes emergentes com a revolução industrial, o Estado-nação e a colonização. Para analisar este paradoxo, Eric Hobsbawm e Terence Ranger propuseram a noção de “tradições inventadas” (Hobsbawm e Ranger, 1983). A segunda observação a ter em conta na crítica do par tradição/progresso apresenta igualmente a forma de um paradoxo. Com efeito, o antitradicionalismo da ciência moderna, com a sua a crença no poder de uma razão desincorporada e de um método universal, enraíza-se, ele próprio, numa tradição historicamente identificada.


As Epistemologias do Sul superam a polaridade tradição/progresso em duas frentes. Uma delas consiste na crítica epistemológica, através da desmistificação da ciência moderna. Trata-se, não de a invalidar, mas de tomar consciência das condições históricas do seu surgimento e da sua expansão, e de combater a sua pretensão ao monopólio do saber, denunciada no conceito de epistemicídio levado a cabo pelo colonialismo. Neste sentido, as Epistemologias do Sul valorizam os saberes ecológicos subalternos dos povos colonizados. Esses saberes, associados a experiências incorporadas e, como tal, pouco codificados, estão mais próximos do costume – assente na tensão entre continuidade e inovação, e por isso relativamente flexível – do que das tradições, mais codificadas e mais rígidas.


A segunda frente de superação da polaridade tradição/progresso consiste na mobilização, epistemológica e política, de uma nova gramática do tempo. Àquela polaridade, essencializada e tomada como fundamento ontológico da modernidade, contrapõe-se a necessidade de analisar a experiência temporal concreta das sociedades e dos indivíduos. Assim, a sociedade moderna pensa-se a partir do equilíbrio entre raízes e opções, privilegiando a lógica das opções e atribuindo o predomínio da lógica das raízes às sociedades não modernas. Ao mesmo tempo, afirma procurar um equilíbrio entre raízes e opções. Ora, as Epistemologias do Sul observam que nas sociedades do Norte Global, predomina a lógica das opções, mesmo quando o seu conteúdo é a proclamação de uma raiz (Santos, 2006).


Neste sentido, é urgente pensar a reversibilidade entre raízes e opções, observada, por exemplo, na emergência de tradicionalismos e neotradições. É o caso dos integrismos e dos fundamentalismos, baseados no projeto de suprir uma “perda de referências” através da opção por uma tradição (mais ou menos inventada). Aqui, as raízes resultam de opções e as opções fundam raízes. Outra linha de investigação consistirá na análise do acesso desigual às raízes e às opções. Por exemplo, a destruição das ligações indígenas à terra, no contexto do neocolonialismo contemporâneo, intensifica as desigualdades no acesso às raízes; e na precariedade laboral intensificada pela globalização do liberalismo observa-se a desigualdade no acesso às opções. O facto de estas dinâmicas se reivindicarem de uma tradição de modernidade lembra-nos que a investigação sobre raízes e opções é inevitavelmente crítica.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Hobsbawm, Eric; Ranger, Terence, (eds.) (1983), The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press.
Santos, Boaventura de Sousa (2006), A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2014), Se Deus fosse um activista dos direitos humanos. Coimbra: Almedina.
Shils, Edward (1981), Tradition. Chicago: The University of Chicago Press.

 

Tiago Pires Marques é Investigador FCT no Centro de Estudos Sociais desde 2014. Doutorado em História, pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, com a dissertação Crime and the Fascist State (Routledge, 2016). De entre as suas publicações recentes, destaca-se o livro Legitimidades da Loucura. Sofrimento, luta, criatividade e pertença (coord., 2018).

 

Como citar

Marques, Tiago Pires (2019), "Tradição", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=4&entry=24675. ISBN: 978-989-8847-08-9