Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Weekly Highlight

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Weekly Highlight

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Crítica Colonial

Maria Paula Meneses
Publicado em 2019-04-01

A ideia de crítica colonial denuncia a incapacidade de qualquer proposta de matriz eurocêntrica de compreender a profundida das propostas políticas descoloniais. Como Chinua Achebe sublinha (1995), ao sugerir esta concepção crítica, qualquer proposta de interpretação dos desafios na base dos projetos radicais de descolonização epistemológica e política continua a ter de ser avaliada e validada (com valor universalizante) de acordo com as regras definidas pela gramática colonial eurocêntrica. De acordo com esta gramática, assente em leituras binárias, os europeus são os professores e os africanos aprendizes, o que equivale a colocar os saberes eurocêntricos num lugar central e superior, sendo os africanos relegados para as margens. E a diversidade do Sul global tem de ser exprimida em função do quadro conceptual monocultural do Norte global, impossibilitando qualquer leitura complexa de África a partir das referências epistémicas africanas, parte de um mundo diverso e dialógico.

 

A descolonização, enquanto proposta política e epistémica (Cabral, 1974), ao exigir o direito à história, para além da narrativa eurocêntrica, desdobra-se em desafios: um, de natureza ontológica - a renegociação das definições do ser e dos seus sentidos - e, outro, epistémico, que contesta a compreensão exclusiva e imperial do conhecimento. Nesta linha, e escrevendo a propósito da realidade africana, Achebe insiste que qualquer perspetiva crítica sobre o continente deve cultivar o hábito de humildade, reflexo de uma experiência limitada do mundo africano, uma reflexão que deve ser purgada de qualquer sentido de superioridade e arrogância, assente na demanda de uma suposta herança civilizatória considerada mais avançada.

 

A criação da alteridade enquanto um significado vazio, um objeto desprovido de conhecimentos e pronto a ser preenchido pelo saber e cultura eurocêntricas, foi o contraponto de uma reivindicação colonial que justificava como ‘dever moral’ transportar a civilização e a sabedoria para povos vivendo supostamente nas trevas da ignorância (Meneses, 2011). A segmentação essencial da sociedade colonial entre ‘civilizados’ e ‘selvagens’, conferiu consistência a todo o projeto colonial ao transformar os autóctones em objetos naturais, sobre quem urgia agir, para os ‘introduzir’ na história.

 

Apesar de ser impossível desfazer a violência do encontro colonial, o apelo à descolonização defende a emancipação económica e epistémica dos povos colonizados, onde o fundamento da libertação reside no direito inalienável de um povo a ter a sua própria história, a tomar decisões a partir da sua realidade, da sua experiência (Cabral, 1976). Esta proposta tem como pano de fundo a exigência do reconhecimento da contribuição africana à cultura global, da filosofia à matemática, da literatura à astronomia. Neste contexto, descolonizar o conhecimento passa por uma revisão crítica de conceitos centrais, hegemonicamente definidos pela racionalidade moderna – estrutura de saber que legitima a expansão do projeto civilizacional moderno ocidental no mundo – como é a história, cultura ou conhecimento. A insistência numa leitura do mundo a partir de referências eurocêntricas impossibilita uma leitura intercultural – pluriversalista e polirracional – do mundo. Na essência, numa proposta que se aproxima das Epistemologias do Sul, a critica colonial defende o revisitar de ideias interrogando a história, repensando passados e projetos presentes, ampliando existências cuja dignidade foi roubada pela violência colonial, dignidade que urge recuperar.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Achebe, Chinua (1995), “Colonial criticism”, in B.A. Grifiths; G. Tiffin (orgs.), The postcolonial studies reader. London: Routledge, 57-61.

Cabral, Amílcar (1976-1977), Unidade e Luta (2 vol.). Lisboa: Seara Nova.

Meneses, Maria Paula (2011), “Images Outside the Mirror? Mozambique and Portugal in World History”, Human Architecture, Vol. 9: 121-137.

 


Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito. É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia).

 

 

Como citar

Meneses, Maria Paula (2019), "Crítica Colonial", Dicionário Alice. Consultado a 19.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24246&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9