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Diáspora

Katia Cardoso
Publicado em 2019-04-01

O termo “diáspora” refere-se à palavra grega que os judeus da Alexandria usaram no ano 250 a.C. para denominar a sua expulsão e exílio coletivo (galut). A par do caso judeu, o arménio e o grego são considerados os três exemplos paradigmáticos da concepção inicial/“original” de diáspora. Nesta perspetiva, Khachig Tölölyan (2007: 648), fundador e editor da revista Diaspora (uma referência na reflexão académica sobre o conceito), define diáspora como:

 

“(…) uma formação social gerada por uma violência catastrófica ou, pelo menos, por uma expulsão coerciva da terra-mãe, seguida de fixação noutros países e no seio de sociedades de acolhimento estrangeiras, e profundamente marcada por gerações de sobrevivência enquanto uma comunidade distinta que se esforça por manter a sua identidade ancestral e por criar novas identidades que sustentam a sua diferença na sociedade de acolhimento. Finalmente, diáspora identifica-se pelos seus esforços em manter o contacto com as comunidades da terra-mãe e noutros pontos.”

 

Portanto, de acordo com a concepção “original”, baseada no ideal-tipo judeu, uma diáspora caracteriza-se pela presença dos seguintes elementos: “dispersão de um grupo de um centro original para duas ou mais periferias; preservação de uma memória coletiva do local de origem; sentimento parcial ou total de alheamento em relação à sociedade local em decorrência de um sentimento de não-aceitação por parte desta; consideração da terra-natal como o verdadeiro home e ao qual se deverá um dia retornar; crença num compromisso de restaurar ou apoiar coletivamente a terra-natal e manutenção de algum tipo de vínculo com as origens” (Safran apud Clifford 1997: 247).

 

Ao longo dos tempos, o conceito “diáspora” foi-se distanciando do seu sentido inicial passando a significar experiências sociais várias que, inclusive, não têm necessariamente a ver com mobilidade humana. Importa, por isso, sublinhar que apesar de ser frequentemente utilizado como tal, a diáspora não é uma consequência natural da migração, nem sinónimo de “comunidade emigrada”, já que, como pontua Steven Vertovec (apud Sökefeld, 2006: 266), “as diásporas surgem a partir de certas formas de migração mas nem todos os movimentos migratórios envolvem uma consciência diaspórica”.

 

A busca de uma definição exata para conceitos como “diáspora” tem-se revelado um exercício estéril, tanto que muitos autores defendem que se deve atentar sobretudo nos contextos em que o conceito é utilizado, ou seja, nas práticas, nas linguagens ou nas atitudes diaspóricas. Não se tratando de um conceito analítico inócuo, nem de uma “entidade etnogeográfica e etnocultural homogénea”, importa, por conseguinte, analisar as distintas realidades empíricas e ter presente a sua mobilização e instrumentalização das mais diversas formas (apoios a projetos políticos e identitários; conflitos armados; investimentos económicos e financeiros, etc.) (Brubaker, 2005: 13).

 

O uso do termo generalizou-se no âmbito da comunidade académica, dos meios de comunicação social e das próprias comunidades migrantes que, em muitos casos, passaram a autorrepresentar-se como tal. Esta “dispersão semântica, conceptual e disciplinar” – caracterizada por Rogers Brubaker (2005) como “diasporização da diáspora” –, acolhida e aplaudida pelos mais heterodoxos, é, portanto, criticada pelos mais puristas que defendem não haver diáspora sem a existência dos critérios acima referidos.

 

Autores como James Clifford (1997: 248-249; 253) reforçam a ideia de que a experiência judaica, a despeito da sua relevância histórica, não deve ser tomada como modelo definitivo, uma vez que exclui diversas outras histórias de deslocamento. Nesse sentido, propõe o alargamento dos limites tradicionais do conceito ao defender que, por exemplo, tribos dispersas podem reclamar “identidades diaspóricas”. Endossando uma perspetiva não essencialista, James Clifford destaca ainda o elemento relacional, bem como as tensões que atravessam as atuais diásporas – tradicional e moderno; local e global; nacional e transnacional; territorial e desterritorial; pertença e não pertença; integração e exclusão; residência e cidadania; exílio e retorno; pureza e hibridez; rigidez e flexibilidade; etnicização e assimilação; paroquialismo e cosmopolitismo –, as quais definem a “condição diásporica” e obrigam à sua constante reinvenção e reformulação, assim como das relações estabelecidas com as sociedades de origem e de acolhimento, questionando as assunções rígidas e essencialistas quer de identidade quer de território.


Às epistemologias do Sul cabe uma perspetiva sobre as diásporas “contemporâneas”, a qual tem sido realçada nas abordagens críticas, nomeadamente a abordagem pós-colonial, que enfatiza não só o sentido de pertença a uma homeland ou a constante criação de comunidades simbolicamente ligadas a uma origem ancestral, mas sobretudo a experiência de desenraizamento, de “exílio”, de permanente “trânsito” e de “fluidez” entre uma sociedade de acolhimento, frequentemente excludente, e uma sociedade de origem comummente idealizada.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Brubaker, Rogers (2005), “The ‘diaspora’ diaspora.” Ethnic and Racial Studies, Vol. 28(1): 1-19.

Clifford, James (1997), Routes: Travel and translation in the late twentieth century. Cambridge: Harvard University Press.

Sökefeld, Martin (2006), “Mobilizing in transnational space: a social movement approach to the formation of diaspora”, Global Networks, Vol. 6(3): 265–284.

Tölölyan, Khachig (2007), “The contemporary discourse of Diaspora Studies”, Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, Vol. 27(3): 641–655.

 


Katia Cardoso é licenciada em Relações Internacionais, mestre em Estudos Africanos e doutoranda em Pós-colonialismos e Cidadania Global e investigadora do Centro de Estudos Sociais

 

 

Como citar

Cardoso, Katia (2019), "Diáspora", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24257&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9