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Maria Irene Ramalho

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Direitos Coletivos

Bruna Muriel Huertas Fuscaldo
Publicado em 2019-04-01

A categoria de direitos coletivos foi se delineando no interior do processo histórico de transformação do direito moderno. Anunciou os seus primeiros contornos na passagem da luta pelos direitos negativos de primeira geração (os cívicos e políticos, dos séculos XVIII e XIX) para os direitos positivos de segunda geração (os sociais, econômicos e culturais, que ganham força no pós-Guerra). Porém será a partir da demanda pelos direitos de terceira geração (como o direito ambiental, à paz e ao desenvolvimento, que irrompem na segunda metade do século XX) que os direitos coletivos ganham formas mais definidas.

 

Seu surgimento, portanto, esteve vinculado tanto às mudanças de perspectiva em relação ao papel do Estado na sociedade, quanto às lutas dos grupos subalternizados pela ampliação dos direitos humanos. A sua peculiaridade em relação ao direito individual reside no fato de serem transindividuais, ou seja, superarem a exclusividade da titularidade individual do direito. Vale lembrar que a ideia de indivíduo - livre, independente e autônomo - serviu de base para as Constituições modernas e é a base sobre o qual assenta o próprio Estado moderno.

 

A possibilidade da titularidade coletiva dos direitos é, pois, um desafio e tanto à perspectiva individualista que fundamenta o liberalismo político e jurídico. A sua existência não se dá sem resistência e os direitos coletivos são ignorados frequentemente nos embates jurídicos ainda hoje. Principalmente quando está em jogo o direito individual à propriedade, sacralizado pela tradição jurídica clássica que segue ignorando as experiências que transgridem os interesses colonialistas da justiça eurocêntrica.

 

O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direitos dos trabalhadores e os direitos coletivos dos povos indígenas formam parte da categoria de direitos coletivos em seu sentido amplo. Eles diferem entre si pelo grau de coesão e de determinabilidade ou indeterminabilidade do sujeito de direito. No primeiro caso, são pessoas indeterminadas, sem vínculo comum de natureza jurídica (os direitos difusos). Nos dois últimos casos, os titulares do direito são determináveis enquanto grupo e estão vinculados por uma relação jurídica base (os direitos coletivos stricto sensu).

 

Quando observados através do projeto político-epistêmico inovador das Epistemologias do Sul, vemos que os direitos coletivos dos povos indígenas são especialmente provocadores dos direitos individuais clássicos. Representam uma ruptura paradigmática significativa, na medida em que o reconhecimento de que alguns direitos não se referem apenas ao indivíduo, mas à coletividade, relaciona-se à uma concepção de dignidade humana incapaz de compreender o indivíduo como um ser isolado.

 

Num exercício de tradução intercultural que pode contribuir para nos aproximar dessa perspectiva  de coletividade, podemos recorrer às palavras de Huanacuni (2010) quando afirma que, entre os povos originários andinos, o ser humano, isoladamente, é um ser incompleto, emergindo plenamente apenas através da interação com a alteridade. Esse outro, no entanto, não está representado, apenas, pelos demais seres humanos existentes na comunidade, mas também pelos animais, pelas plantas, pelas intempéries... A Pachamama, enfim. Ou seja, como tantos outros povos do Sul Global, o indivíduo é percebido a partir da sua relação de interconexão e interdependência com os outros entes que compõem o cosmos.

 

Nesse sentido, é válido destacar como a promulgação dos Direitos da Natureza ou Pachamama pela Constituição do Estado Plurinacional do Equador (2007) jogou novas luzes ao debate sobre os direitos coletivos. Ao transformar a própria natureza no sujeito dos direitos reivindicados, o texto constitucional equatoriano desafiou não apenas a ideia da exclusividade da titularidade individual do direito, mas a própria ideia de exclusividade da titularidade humana, colocando em xeque a separação ontológica entre o ser humano e a natureza que é própria ao pensamento dualista dicotômico da modernidade ocidental.

 

Costuma-se acreditar, no meio jurídico, em uma contradição intrínseca aos direitos coletivos, mais especificamente entre os direitos indígenas e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esses são apresentados como contraditórios naqueles casos em que, simultaneamente, temos o interesse dos povos indígenas de permanecerem em seus territórios ancestrais e o interesse na proteção da fauna e da flora locais. Para Marés (2003) a afirmação é falaciosa, na medida em que ambos direitos protegem os territórios biodiversos contra as atividades depredatórias do capitalismo. São, portanto, direitos coletivos complementares, como demonstram os Direitos da Natureza, ao sintetizar demandas provenientes das lutas indígenas e ecologistas.

 

Como sabemos, o avanço na ampliação e especificação dos direitos no âmbito normativo não é observado de igual maneira na prática. A intensificação das atividades depredatórias e as diversas formas de violências físicas e simbólicas sofridas pelos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, denunciam a distância entre os direitos coletivos proclamados pelos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais e aqueles efetivamente protegidos e desfrutados. A conjuntura não é favorável. Recentemente, observamos como a ruptura da ordem democrática em países como o Paraguai e o Brasil, explicitou a ameaça a um direito de corte individual e liberal tão básico e comumente aceite, como o simples direito à participação política por meio do voto (e o respeito ao resultado dessa participação). Nesse contexto, tornam-se ainda mais frágeis os direitos coletivos, ainda polêmicos e constantemente violados. Precisamos estar atentos à sua efetivação. (Aliás, atentos e fortes, como sugere a música de Caetano e Gil).

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Bobbio, Norberto (2004), A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier.

Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (2010), Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez: pp. 09 - 21.

Sousa Filho, Carlos Frederico Marés de (2003), “Multiculturalismo e direitos coletivos”, in Santos, Boaventura de Sousa (org.) Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 71-109.

Huanacuni, Fernando (2010), “Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario”, in Sumak Kawsay: Recuperar o Sentido da Vida. Quito: ALAI, 452: 17-23.

 


Bruna Muriel é Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo. Atua como professora do Bacharelado em Ciências e Humanidades e do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.

 

 

 

Como citar

Fuscaldo, Bruna Muriel Huertas (2019), "Direitos Coletivos", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24262&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9