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Direitos da Natureza

Rita Campos
Publicado em 2019-04-01

Numa perspectiva antropocêntrica, a biodiversidade, nas suas diferentes organizações, dos genes aos ecossistemas, é o suporte vital para a existência humana. Daqui surgem inúmeras visões centradas no nosso direito à natureza, porquanto é a natureza que nos oferece os serviços-base dos direitos humanos, desde o acesso aos alimentos e água potável até ao usufruto dos espaços naturais. Temos também nesta perspectiva os alicerces para as políticas de proteção e gestão da biodiversidade, definidas comummente a partir de dados que quantificam aspectos demográficos das espécies, as suas relações com outras espécies e a diversidade de espécies numa região. Menos comum é a utilização de medidas de relações entre populações ou comunidades locais com a natureza onde se inserem. Estas medidas rompem com o pensamento ocidental e reconciliam as relações entre humanos e natureza. Talvez por isso, em muitos locais do globo onde estas relações foram valorizadas em políticas de proteção e gestão da biodiversidade, integrando os conhecimentos locais e os direitos coletivos das populações na defesa dos seus territórios, se verifica uma mais eficaz proteção dos recursos naturais. E assim chegamos a um ponto fulcral: os direitos humanos e os direitos da natureza estão interligados e são complementares. Em razão disto, falar em direitos da natureza, deveria equivaler a falar em direitos das diversas comunidades humanas, a falar em direitos humanos.

 

O idealismo da multiculturalidade dos direitos humanos encerra em si uma multitude de utopias de direitos, na qual cabem diferentes concepções dos sujeitos recipientes desses direitos. Desafiando as concepções ocidentais mais simplistas dos direitos humanos, que assentam na simetria direito-dever, em 2008 o Equador incluiu na sua constituição os direitos da natureza. Não se podendo impor deveres à natureza, esta está tradicionalmente excluída da condição de sujeito com direitos. Assim, a ideia de conceder direitos à natureza e, ao fazê-lo, incluir, por inerência, a atribuição de direitos às futuras gerações, pode parecer estranha num contexto de conhecimentos e culturas predominantemente ocidentais. A base legal para reconhecer a natureza como sujeito ou entidade de direito é idêntica à das crianças ou pessoas com incapacidades, ou seja, preconiza a existência de alguém que assuma o papel de tutor e reclame os direitos em seu nome. No Equador e noutros países que lhe seguiram o exemplo - como Bolívia ou Butão -, essa função fica muitas vezes nas mãos dos povos indígenas, das comunidades que vivem na região e do que a região lhes dá, mantendo um equilíbrio sustentável com a biodiversidade local. Esse seria o propósito de todas as pessoas: alcançar o seu bem-estar contribuindo para a integridade e sustentabilidade dos ecossistemas, lembrando-se que fazemos parte deles.

 

A intrínseca ligação entre a humanidade e a biodiversidade não só justifica como exige uma mudança de paradigma face à natureza e aos seus direitos, ao direito fundamental e inalienável de existir e florescer e a que os seus ciclos vitais não sejam alterados por agressões humanas. O reconhecimento do direito da natureza surge em parte como resposta a um pensamento antropocêntrico dominante que mantém práticas destrutivas como o extrativismo ou o desmatamento. Um modelo capitalista de desenvolvimento baseado no globalismo localizado, levando a que as condições locais sejam destruídas ou reestruturadas para atender a imperativos transnacionais. No caso concreto do Equador, com o foco na indústria petrolífera, e as suas práticas lesivas que causaram graves problemas ambientais, sociais e de saúde às florestas e populações indígenas locais, a alteração da constituição e os direitos da natureza surgem num contexto de mobilização social contra o modelo de economia política dominante. Os direitos da natureza confundem-se assim com os direitos coletivos e a autodeterminação das populações indígenas e fortalecem a defesa dos seus territórios contra as agressões das atividades não-sustentáveis.

 

Um desenvolvimento centrado nos valores e direitos da natureza traduz uma visão de herança comum da humanidade, um pensar na biodiversidade e na sustentabilidade dos diferentes recursos naturais - humanidade incluída - e nos seus guardiões, garantes últimos das gerações presente e futuras. Enquanto enfrentamos uma nova extinção em massa da biodiversidade, devemos procurar sistemas legais alternativos, com leis ambientais mais robustas e eficientes. Numa altura em que a população mundial se concentra em zonas urbanas, aumentando o risco de desconexão com a natureza, é urgente efetivar uma real mudança de paradigma. Reconhecendo e respeitando a interconexão das pessoas com o mundo natural, mudando de uma abordagem antropocêntrica para uma abordagem ecocêntrica, do direito à natureza para o direito da natureza; reconhecendo e valorizando diferentes conhecimentos, adoptando e respeitando modos de viver e fazer em harmonia com os ritmos da natureza.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Santos, Boaventura de Sousa (2009), “Toward a multicultural conception of human rights.” in Felipe Gómez Isa, Koen de Feyter (eds.), International human rights law in a global context. Bilbao: University of Deusto, pp. 97-121.

Daly, Erin (2010), “The Ecuadorian exemplar: the first even vindications of constitutional rights of nature”, Review of European Community and International Environmental Law, 21: 63-66.

Cullinan, Cormac (2014), “Governing people as members of the Earth community.” in Lisa Mastny (ed), State of the world 2014: governing for sustainability. Washington: Island Press, pp. 72-81.

Rodrigues, Sara (2014), “Localising 'the rights of nature': a critical discourse analysis.” Green Letters, Vol. 18(2): 170-184.

 

Rita Campos é bióloga e investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O seu trabalho desenrola-se na interface entre ciência e sociedade, centrado na comunicação e educação não-formal sobre biodiversidade. Publicou vários artigos de investigação e recursos educativos, alguns dos quais premiados.

 

Como citar

Campos, Rita (2019), "Direitos da Natureza", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24263&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9