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Dom/Dádiva

Sílvia Portugal
Publicado em 2019-04-01

A ideia generalizada de que o dom desapareceu das sociedades contemporâneas e cedeu lugar ao cálculo racional e à troca mercantil não poderia estar mais errada. Na verdade, continua a persistir um modo de circulação dos bens que difere intrinsecamente do analisado pelos economistas – um sistema de dádiva que serve para estabelecer e alimentar relações sociais.

 

Fenómenos como a oferta de prendas, a prestação de cuidados às crianças, aos idosos e aos doentes, os convites para festas e a hospitalidade, o voluntariado, a doação de sangue e de órgãos constituem formas de troca social que não são hoje residuais, nem quantitativamente (dada a sua frequência no quotidiano), nem qualitativamente (dada a sua importância na vida dos indivíduos). A definição de dádiva proposta por Godbout – “toda a prestação de bem ou serviço efetuada sem garantia de retorno, com vista a criar, alimentar ou recriar o vínculo social entre as pessoas” (1992: 32) – permite identificar um modo de circulação dos bens ao serviço do laço social, que constitui um elemento essencial da sociedade.

 

A perenidade da dádiva não resulta apenas da necessidade de trazer um “suplemento de alma” aos interesses mercantis e estatais, mas testemunha o “facto de o dom, ele próprio, tal como o mercado e o Estado, formar um sistema” (Godbout, 1992: 21) de relações sociais, propriamente ditas, enquanto relações não redutíveis a interesses económicos ou de poder.

 

O dom serve para estabelecer relações e uma relação sem esperança de retorno, uma relação de sentido único, não é uma relação. Mas o dom não se reduz à expectativa de retribuição. Interesse e desinteresse, liberdade e obrigação alimentam a dádiva e o vínculo social que ela estabelece. Se a regra fundamental é a reciprocidade, ela não se processa numa lógica binária de dádiva e retribuição. Ao aceitar uma dádiva – “muito obrigado” – o receptor passa a ter obrigações para com o dador. O dom instala entre os parceiros um estado de dívida que se torna permanente à medida que se constrói um ciclo de dom e contradom. Ao contrário do mercado que se rege pela anulação da dívida, a dádiva funda-se sobre ela (Godbout, 2000). Assim, é necessário pensar a dádiva não como uma série de atos unilaterais e descontínuos, mas como relação: “o dom não é uma coisa mas uma relação social” (Godbout, 1992: 15).

 

Na sua obra seminal – Ensaio sobre a dádiva – Marcel Mauss caracteriza  o dom como um “fenómeno social total”. Mesmo efetuada por indivíduos singulares, a dádiva diz respeito ao conjunto das dimensões da ação e repercute-se em toda a sociedade. Para além da sua dimensão utilitária, ela é, essencialmente, simbólica. Não só os dons são símbolos, como os símbolos devem ser entendidos como dons. Deste modo, “o paradigma do dom pode ser compreendido igualmente como um paradigma do simbolismo” (Caillé, 2000: 125).

 

A perspetiva a partir da dádiva permite superar uma limitação usual nas ciências sociais: a separação da análise das coisas da análise dos laços. Tradicionalmente, analisa-se, por um lado, o que circula, do ponto de vista económico-social, do mercado (ou da redistribuição estatal) e, por outro lado, os laços sociais, a partir de um ponto de vista simbólico e relacional. Os dois aspetos estão separados. Esta separação faz, aliás, parte do ideal da modernidade: de um lado, a dimensão material, do outro, a dimensão afetiva. A perspetiva a partir da dádiva obriga a juntar os dois pontos de vista, superando a rutura entre as relações sociais e o seu conteúdo. O objeto de estudo – o que circula – pertence ao mundo económico-social, mas a questão que se coloca – a sua relação com o laço social – resulta de uma aproximação simbólico-relacional.

 

Esta abordagem permite construir uma alternativa aos paradigmas dominantes que se apoiam sobre teorias monodimensionais e reducionistas da ação social. O individualismo defende que todas as ações, regras ou instituições derivam dos cálculos, mais ou menos, conscientes e racionais, efetuados pelos indivíduos. O holismo (em qualquer das suas versões: culturalismo, funcionalismo, estruturalismo), pelo contrário, defende que a ação individual se limita a expressar uma totalidade que lhe preexiste e que aparece, assim, como única realidade.

 

À luz de qualquer destes dois paradigmas a dádiva é incompreensível. No primeiro, dissolve-se no “interesse”, no segundo na “obrigação”. O paradigma da dádiva não nega a existência de nenhum destes dois momentos – da individualidade ou da totalidade – mas recusa-se a tomá-los como dados. Partindo da inter-relação generalizada entre as pessoas, e perguntando-se como se engendram, concreta e historicamente, os dois momentos opostos, faz do dom (do símbolo, do político) o operador privilegiado, específico, da criação do laço social. O paradigma da dádiva reconhece a força dos interesses e a efetividade da obrigação, mas serve-se da dialética para pensar estes elementos no quadro de uma teoria pluridimensional e paradoxal da ação (Caillé, 2000).

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Caillé, Alain (2000), Anthropologie du don. Le tiers paradigme. Paris, Desclée de Brouwer.

Godbout, Jacques T. (1992), L’esprit du don. Paris, La Découverte.

Godbout, Jacques T. (2000), Le don, la dette et l’identité. Paris, La Découverte.

Mauss, Marcel (1988), Ensaio sobre a dádiva. Lisboa, Edições 70.

 


Sílvia Portugal, Socióloga, Professora da Faculdade de Economia e Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.

 

 

Como citar

Portugal, Sílvia (2019), "Dom/Dádiva", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24267&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9