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Especiarias

Maria Paula Meneses
Publicado em 2019-04-01

As especiarias acrescentam sabor e textura aos ingredientes básicos e retiram os alimentos do seu estado de natureza, transformando-os em artefactos culturais. Estes artefactos encerram em si os trajetos de afetos, encontros e violências que caracterizam os contactos culturais, frequentemente em contextos de dominação e subordinação extremamente assimétricos.

 

Os estudos sobre alimentos e os saberes envolvidos no seu cultivo, preparação e preservação, têm vindo a constituir-se como um campo crítico de saber, com amplas implicações políticas, sociais e culturais. Mas se pensarmos apenas sobre a comida, corre-se o risco de se reiterar os dualismos cartesianos - entre o corpo e a mente, entre a teoria e a prática, entre a razão e a emoção -, perpetuando assim os paradigmas originais que removeram o cheiro e o sabor das raízes da racionalidade eurocêntrica.

 

As epistemologias do Sul, ao proporem uma nova proposta epistemológica assente na incompletude dos saberes, resgatam os saberes intrínsecos aos alimentos – sobre a sua produção, o cuidado da sua seleção e da sua transformação culinária -, aprofundando o conhecimento sobre processos identitários e lutas por justiça cognitiva. Nos contextos contemporâneos cuja história está marcada pela violência colonial, os alimentos entram no domínio da produção de conhecimento agregada a dois não-lugares: os colonizados e as mulheres. Porém, o trabalho manual que assenta no toque, no cheiro, no sabor e no som - as atividades culinárias, realizadas por mulheres e/ou povos marginalizados -, têm sido conhecimento objeto de atenção sobretudo pela sua componente exótica, as especiarias. Mas o contexto da produção e consumo dos alimentos constituem um campo de construção de saber, um espaço de debate político.

 

Movendo-se através de várias culturas, os sabores e os saberes envolvidos na sua preparação podem ser interpretadas como ‘zonas de contacto’, espaços de criatividade, de confronto e de intersecção, onde se articulam distintas relações de poder. Cozinhar é uma forma de saber. A receita encerra a história dos ingredientes, a sua procura e uso na preparação, os estilos de cozinhar e os contextos de apresentação e consumo dos alimentos. As especiarias, uma parte importante das receitas, revelam uma história intrincada sobre o seu uso pelas culturas no mundo, exemplo de artesanias cujas práticas contém saberes gerados em aprendizagens nem sempre pacíficas.

 

Normalmente, a palavra especiaria aplica-se para referenciar a parte de uma planta (seja a raiz, a casca, as sementes ou mesmo as flores) usada principalmente para dar sabor, coloração ou preservar alimentos. Há ainda especiarias como a mirra e o incenso, usadas apenas pelo seu aroma. Na atualidade, as especiarias são usadas principalmente na preparação da comida, mas nem sempre foi assim. Para além da conservação de alimentos, muitas das especiarias possuem usos terapêuticos. No antigo Egito, por exemplo, a canela era uma especiaria muito apreciada porque essencial no embalsamamento, juntamente com o anis, os cominhos e a manjerona, especiarias aromáticas usadas para lavar as entranhas dos mortos. O próprio Código de Hammurabi refere o uso de especiarias medicinais. Já nos contextos europeus da Idade Média, as especiarias ajudavam a preservar os alimentos, tornando a comida mal preservada palatável, ao mesmo tempo que camuflavam o mau cheiro. Depois de más colheitas e em invernos frios a única coisa que assegurava que não se morria de fome era a presença de carne fortemente salgada e preservada com pimenta.

 

Os detalhes do comércio das especiarias e das adaptações do seu uso ajudam a ilustrar movimentos globais. A maioria das especiarias mais utilizadas é originária da Ásia, sendo exceção o piripiri e a baunilha (oriundos das Américas) e a malagueta (ou pimenta da Guiné). Este facto explica porque as especiarias estiveram no centro de várias disputas por controlo de rotas de comércio e de locais de produção. Como o trânsito de especiarias mostra, a globalização não foi produto patenteado do ocidente. Quando a Europa ocidental chegou ao sistema-mundo onde se realizava o comércio de especiarias (Índico e Pacífico), juntou-se a um sistema de trocas comerciais com uma longa história. Estes contactos globais afirmaram processos de desenvolvimento a partir de contactos marítimos, onde a troca de saberes e de culturas produziu cidades cosmopolitas como o Cairo, Malabar, Zanzibar ou Goa. Nestes espaços, transacionavam-se especiarias, sabores e saberes, onde os diálogos fermentavam para além da homogeneidade, essencialismo ou conquista. Como outras formas de performance oral que combinam a criatividade com a consistência da reprodução, a erudição sobre o uso e a combinatória das especiarias, na cozinha, ocorre quer por memórias individuais, quer de grupos que partilhavam saberes, de forma escrita ou oral. As práticas destas cozinheiras expressam as histórias e os encontros de culturas, refletindo opções e experiências políticas, saberes e experiências que importa resgatar.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Hobhouse Henry (1992), Seeds of Change. London: Macmillian.

Mintz, Sidney (1996), Tasting Food, Tasting Freedom: excursions into eating, culture and the past. Boston: Beacon Press.

Turner, Jack (2004), Spice: the history of a temptation. New York: Knopf.

 


Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito. É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia).

 

 

Como citar

Meneses, Maria Paula (2019), "Especiarias", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24279&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9