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Maria Irene Ramalho

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Espiritualidades

Teresa Toldy
Publicado em 2019-04-01

Diz Pedro Casaldáliga que “‘espiritualidade’, decididamente, é uma palavra infeliz” (1992: 1). Infeliz, porque, para muitas pessoas, “espiritualidade pode significar algo arredado da vida real, inútil, e até, quiçá, odioso” (idem), porque associado a “abstrações irreais” (idem). Contudo, a associação de espiritualidade a abstrações é resultante de uma compreensão do ser humano de acordo com a qual corpo e espírito são realidades opostas, separáveis. Esta visão é herdeira da filosofia grega, introduzida no cristianismo e transmitida ao longo de séculos em versões convictas de que castigar o corpo seria elevar a alma. Ora nem o cristianismo na sua origem tem subjacente uma antropologia dicotómica (nascido que foi no contexto de uma antropologia semita, que concebe o ser humano como uma unidade), nem a espiritualidade, nas suas múltiplas formas e expressões, se pode reduzir, de forma alguma, a um espiritualismo sem corpo, à associação a uma antropologia dicotómica ou, sequer, à ou a uma religião. Por isso, será mais expressivo desta diversidade utilizar a palavra no plural (espiritualidades), para reforçar a pluralidade das suas formas, sempre contextualizadas culturalmente.

 

A tendência para a “domesticação” de formas de espiritualidade de regiões do mundo que não as ocidentais levou, frequentemente, à interpretação dessas mesmas formas de espiritualidade a partir de categorias eurocêntricas e da universalização das mesmas. Green (2012), por exemplo, chama a atenção para o facto de a tradição islâmica sufi ter sido interpretada pelos investigadores europeus e americanos do início do século XX à luz das noções de misticismo da cultura Protestante, nomeadamente, numa perspetiva individualista, já que, para o Protestantismo, “a autoridade da experiência individual autónoma, sem mediação” (ibidem: 2) substitui a autoridade da autoridade religiosa institucional. Ora, segundo Green, isso levou a uma distorção na compreensão do que seja o sufismo, transformando-o numa forma de oposição ao Islão “legalista” e numa espiritualidade apolítica (idem), quando, na realidade, segundo o autor, esta corrente islâmica, pela relevância que atribui à relação mestre-discípulo, possui uma dimensão comunitária. Além disso, possui também significado político, dado que representou, em muitos contextos, “uma encarnação do Islão da autoridade, baseado em poderes de conferir bênçãos herdados de prestigiadas linhagens de sangue” (idem).

 

Por outro lado, a suposta “validação” de espiritualidades a partir de critérios eurocêntricos levou (e leva) também à redução a formas de superstição das espiritualidades e cosmovisões não relacionadas com religiões institucionalizadas em contexto ocidental, vividas num quotidiano sem referência a “especialistas do religioso” (de acordo com os cânones ocidentais) – leituras nas quais a antropologia da religião e a missionação desempenharam papeis decisivos). Como diz Samuel O. Imbo (2004: 368), “o modelo de classificação ocidental não permitia ao missionário encontrar o africano senão como um ‘animista’. Como representante de uma civilização superior cuja missão era civilizar os pagãos, como poderia o africano ser visto por ele senão como um ser imaturo e primitivo?”

 

A escuta das vozes do mundo nos seus diversos enunciados aponta caminhos para uma superação da redução eurocêntrica das espiritualidades, incluindo das suas formas desencarnadas e dicotómicas. Assim, por exemplo, as vozes de mulheres chicanas, latinas e indígenas valorizam o lugar do corpo (aquilo que Inés Hernández-Avila, ao descrever a espiritualidade descreve como “fleshing the spirit”, isto é, “dar carne ao espírito” – cf. 2014) e a ligação à comunidade. Diz Hernández-Avila que “dar carne ao espírito e espírito à carne é algo que está relacionado intrinsecamente com a justiça social, ambiental e global, com o nosso bem-estar enquanto mulheres, com as nossas comunidades, com todos os aspetos da vida, com todas as nossas relações” (ibidem: xiv). O corpo aparece, assim, como o lugar da experiência espiritual de harmonia com o cosmos. Hernández-Avila invoca a multiplicidade de significados de neplanta (um termo da antropologia azteca) como expressão desta ligação e, simultaneamente, da experiência de mestiçagem, de viver na fronteira, numa dinâmica fluida, numa ligação criativa e sofrida (por isso fala também de “amordolor”) com “as fontes do sagrado e do grande mistério da vida e da morte” (idem).

 

O contágio cultural leva, hoje, também, a formas assumidamente híbridas de espiritualidade, nas quais as identidades religiosas se constituem através do diálogo, do cruzamento, de “múltiplas pertenças” e de visões dialogantes acerca de um mundo melhor, fazendo desembocar a espiritualidade na ação, pois se “a espiritualidade é património de todos os seres humanos” (Casaldaliga, 1992: 3), assim também o é o mundo como casa comum.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Casaldaliga, Pedro e Vigíl, José María (1992), Espiritualidad de la Liberación. Quito: Verbo Divino.

Green, Nile (2012), Sufism: A Global History. Chichester: Wiley-Blackwell.

Hernández-Avila, Inés (2014), “Foreword: A Meditation”, in Elisa Facio e Irene Lara (eds.), Fleshing the Spirit: Spirituality and Activism in Chicana, Latina, and Indigenous Women’s Lives. Tucson: The University of Arizona Press, xiii-xx.

Imbo, Samuel O. (2004), “Okot p’Bitek’s Critique of Western Scholarship on African Religion”, in Kwasi Wiredu (ed.), A Companion to African Philosophy. Oxford: Blackwell, 364-373.

 


Teresa Toldy é teóloga, doutorada pela Philosophisch-theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt), pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Professora Associada com Agregação na Universidade Fernando Pessoa, investigadora do CES, onde co-coordena o Observatório da Religião no Espaço Público.

 

 

Como citar

Toldy, Teresa (2019), "Espiritualidades", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24280&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9