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Maria Irene Ramalho

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Memórias

Miguel Cardina
Publicado em 2019-04-01

Memórias são representações do passado tal como se forjam no presente. Se o processo implica a existência de um sujeito que recorda e se apropria da história de um modo singular, a verdade é que o ato de rememorar é eminentemente social, moldado por estruturas culturais, por convicções ideológicas e por marcadores de classe, raça ou género. Importa vincar ainda que a recordação de fenómenos passados, direta ou indiretamente experienciados, é sempre feita de modo retrospectivo, pois é a partir de um dado presente que os sujeitos e as sociedades evocam e ressignificam o acontecido.

 

Na primeira metade do século XX, Maurice Halbwachs falou da existência de quadros sociais da memória e cunhou o termo “memória coletiva”, abrindo campo para a reflexão sobre o conceito de memória para lá da teoria do conhecimento e do campo da psicologia. Seria porém nas últimas décadas do século XX que o termo ganhou um espaço crescente, num quadro marcado pela afirmação de novas identidades associadas a processos de (re)construção nacional ou a reivindicações culturais; pela visibilização dos legados de guerras, genocídios e crimes contra a humanidade; pelas mudanças tecnológicas que permitiram uma maior e mais plural difusão de representações do passado; e ainda pelos impactos do pós-estruturalismo na reflexão historiográfica.

 

Nas últimas décadas, poucos termos tiveram uma tão extensa difusão nos centros de produção intelectual e uma tão lata presença nos espaços públicos como o conceito de “memória”. Se é certo que o fenómeno do Holocausto e o estudo das “memórias traumáticas” a ele associadas concitou uma particular atenção num primeiro momento, os estudos da memória assistiram depois à proliferação de novas ferramentas conceptuais. Considerando em comum justamente o caso do Holocausto e dos legados coloniais, Michael Rothberg sugere a possibilidade de se ativar uma “memória multidirecional” que articule diferentes memórias (p. ex. memória do Holocausto e memória da escravatura e do colonialismo), permitindo assim desafiar as narrativas que obliteram determinados fenómenos a partir da afirmação da superior singularidade de outros e colocar em contraste produtivo diferentes memórias com aspetos comuns, abrindo espaço para o diálogo, o conhecimento e a solidariedade.

 

De múltiplas formas e a partir de variados contextos geopolíticos, a memória tornou-se também, nas últimas décadas do século XX, um elemento central no questionamento da violência e da repressão – onde muitas vezes os testemunhos das vítimas serviram de meio de prova no quadro de processos de “justiça de transição” – buscando-se assim uma nova ligação entre as atrocidades do passado e um futuro mais digno e justo. Isto não nos deve fazer esquecer, porém, que este reconhecimento da injustiça e do sofrimento depende do poder que regiões do mundo ou grupos sociais possuem ou não para inscrever socialmente as suas narrativas e para traduzi-las em gestos públicos que muitas vezes têm de se confrontar com desigualdades estruturalmente encrustadas nos Estados e nas sociedades.

 

Memória e esquecimento são pois construções sociais, reformuladas continuamente na relação dialética com a ordem social e política vigente. Nesta medida, e de forma mais abrangente, todas as sociedades e grupos possuem “políticas de memória”, ou seja, mecanismos através dos quais se selecionam marcos históricos e se constituem narrativas, instituições e valorações que as dotam de conteúdo e sentido, e que não são por isso indissociáveis de “políticas do silêncio”, através das quais se constroem representações seletivas do passado. A dimensão política da memória remete assim para uma particular concatenação entre passado, presente e futuro: as evocações do passado são construídas sempre a partir de um dado presente e o seu alargamento - através da crítica que evidencie como e porquê se visibilizam ou silenciam determinados grupos sociais, mas também, mais genericamente, através de uma crítica da razão metonímica e das suas formas de produção de não-existência - têm um potencial transformador, na medida em que permitem a imaginação de futuros desejáveis.

 

Cristalizada como “tradição”, a memória pode funcionar como um “essencialismo estratégico” que toma formas de demanda contra-hegemónica. Importa ter em conta, porém, que a tradição comporta sempre uma forte dose de “invenção” – tal como foi mostrado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger na análise dos processos de construção das nações modernas – e que essas dinâmicas de pertença e reconhecimento, alavancadas a partir do passado e da cultura, não devem conduzir a modos de negação da pluralidade e da diferença.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Chakrabarty, Dipesh (2000), Provincializing Europe. Princeton: Princeton University Press.

Hobsbawm, Eric e Terence Ranger (1983) (ed.), The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press.

Rothberg, Michael (2009), Multidirectional Memory. Remembering the Holocaust in the Age of Decolonization. Stanford: Stanford University Press.

Santos, Boaventura de Sousa (2002), "Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências", Revista Crítica de Ciências Sociais, 63: 237-280.

 


Miguel Cardina é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Coordenador do projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós-colonial, financiado pelo European Research Council (StG-ERC-715593).

 

 

Como citar

Cardina, Miguel (2019), "Memórias", Dicionário Alice. Consultado a 19.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24320&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9