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Advocacia Popular

Flávia Carlet
Publicado em 2019-04-01

A atuação de advogadas e advogados comprometidos em utilizar o sistema jurídico e judicial hegemônicos em favor das lutas e reivindicações de indivíduos e grupos socialmente excluídos é um fenômeno presente em diferentes contextos do Sul Global. Na América Latina, este gênero particular do exercício profissional da advocacia, orientado pela combinação entre o conhecimento técnico-profissional e o engajamento político, é conhecido como advocacia popular, advocacia militante ou advocacia ativista.

 

Entre 1970 e 1980, essa prática jurídica já se fazia presente em países como o Chile, Peru, República Dominicana, Colômbia, Equador, Brasil, Honduras, Porto Rico, Argentina, México, El Salvador, entre outros, exercida, sobretudo, por meio de redes, coletivos e organizações não-governamentais em defesa de sindicalistas, perseguidos políticos e trabalhadores rurais. Desde então, vem se consolidando no cenário político e jurídico em prol das diversas lutas sociais.

 

São inúmeros os exemplos atualmente em curso na região. Na Colômbia é conhecido o engajamento desta advocacia em favor das vítimas de violência estatal e de grupos paramilitares, a exemplo do trabalho da Corporación de Abogados José Alvear Restrepo; no México, a advocacia militante do Colectivo Emancipaciones está comprometida com o direito à livre determinação e autogoverno das comunidades purépechas de Michoacán; no Brasil, o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola e a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares atuam há mais de duas décadas em favor de comunidades quilombolas e de movimentos sem-teto e sem-terra.

 

A advocacia popular, militante ou ativista mobiliza no seu cotidiano uma multiplicidade de práticas e saberes em prol dos direitos individuais e coletivos de camponeses, comunidades negras, indígenas, mulheres, grupos LGBTs, entre outros. A dimensão prática dessa assessoria envolve, de modo combinado, a incidência sobre os poderes executivo e legislativo; a litigância judicial; a educação jurídica popular; a articulação em redes; o monitoramento de políticas públicas e as denúncias de violação aos direitos humanos. Essas ações, por sua vez, encontram-se sustentadas por uma rica dimensão epistêmica do trabalho jurídico popular – como o saber técnico-jurídico, o saber vivencial, o saber pedagógico, o saber militante, o saber literário, o saber sociológico e o saber filosófico – resultado da trajetória pessoal e coletiva desses profissionais e da sua interação com as lutas populares.

 

Essa diversidade de práticas e saberes inspira os princípios de uma prática jurídica que orienta essas advogadas e advogados do Sul Global a atuarem com – e não para – aqueles que lutam contra a opressão e a dominação. Por um lado, uma relação mediada pelo contato contínuo, pela proximidade e pelo compromisso junto aos grupos que assessora, respeitando o protagonismo da luta popular em cada processo jurídico-político. Por outro, uma pedagogia de trabalho orientada por uma metodologia assente numa ecologia de práticas e saberes, em que os conhecimentos dos advogados e advogadas encontram-se com os conhecimentos e as práticas dos seus assessorados, numa partilha de concepções, experiências e expectativas, a fim de criar possibilidades concretas de solução aos problemas e aos desafios colocados.

 

Por ser solidária aos projetos e reivindicações sociais, assumindo uma responsabilidade ética, política e jurídica ao lado daqueles que se insurgem contra os ditames do colonialismo, do capitalismo e do heteropatriarcado, a advocacia popular trava uma autovigilância constante, questionando-se a si própria e o trabalho que realiza, a fim de não incorrer em posturas paternalistas e subalternizadoras que, a contrapelo de um diálogo de saberes, restam por atropelar lideranças e retirar o protagonismo dos grupos sociais em suas lutas.

 

Ao representar um modo diferenciado de conhecimento e ação, em que une conhecimento epistêmico e político, a advocacia popular, militante ou ativista, confronta a monocultura do saber jurídico, rompendo com a formação tradicional e hierárquica das profissões jurídicas, nomeadamente o modelo único de advocacia liberal ensinado nas Faculdades de Direito. Trata-se de uma prática jurídica de retaguarda, que não se autodefine apenas por sua expertise técnica, mas por sua condição militante e engajada aos projetos de transformação social. Deve ser concebida, assim, como uma advocacia emergente e insurgente do Sul Global, comprometida com o pensamento crítico e uma prática jurídica emancipatória.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Alfonsin, Jacques Távora (2013), Das legalidades injustas às (i)legalidades justas: estudos sobre direitos humanos, sua defesa pela assessoria jurídica popular em favor de vítimas do descumprimento da função social da propriedade. Porto Alegre: Armazém Digital, 09-32.

Aragón Andrade, Orlando (2018), “Traducción intercultural y ecología de saberes jurídicos en la experiencia de Cherán, México. Elementos para una nueva práctica crítica y militante del derecho”, in Maria Paula Meneses & Karina Bidaseca (Orgs.), Epistemologías del Sur. Buenos Aires: Clacso. Coimbra: CES, 367-384.

Santos, Boaventura de Sousa (2011), Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez.

 


Flávia Carlet é doutora em sociologia do direito pela Universidade Coimbra. As suas áreas de pesquisa incluem os estudos sobre advocacia popular, acesso à justiça, comunidades negras rurais e lutas por território.

 

Como citar

Carlet, Flávia (2019), "Advocacia Popular", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24428&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9