Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Weekly Highlight

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Weekly Highlight

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Objetividade/Neutralidade

António Carvalho
Publicado em 2019-04-01

As noções de objetividade e neutralidade são apanágio dos modelos epistemológicos e ontológicos da modernidade eurocêntrica, universalista, colonialista, patriarcal e especista. Se, no modelo cartesiano clássico, a objetividade é conferida através de uma metodologia que aproxima o humano do divino, produzindo uma linha abissal entre espírito e matéria e entre humanos e não-humanos, na visão da húbris de Francis Bacon o conhecimento é poder e está intimamente associado à capacidade de manipulação da natureza.

 

Seguindo Boaventura Sousa Santos, a objetividade/neutralidade pode ser lida enquanto um localismo globalizado que se manifestou no esclavagismo, na pilhagem de recursos naturais, no epistemicídio, na apropriação de práticas tradicionais e no genocídio de povos humanos e não-humanos para satisfazer os impulsos modernos e expansionistas do homem branco cristão. É uma utopia epistemológica que serve os interesses da tecnociência ocidental e que confunde o saber com a manipulação da matéria, obliterando alternativas não-modernas através da força, da perseguição e do extermínio.


A objetividade e a neutralidade são duas dimensões da mesma ontologia caracterizada por Derrida enquanto falo-logocêntrica, assumindo que é possível reduzir o real a um conjunto de variáveis manipuláveis e acessíveis ao intelecto humano, decorrente de uma epistemologia representacional que ignora o estranho, o estrangeiro e o não-moderno. A neutralidade promove uma cisão entre poder/saber que ignora o facto de que toda a política é ontológica e que toda a ontologia é política – o conhecimento é performativo, reorganizando o mundo material e reconfigurando as relações entre humanos e não-humanos, cristalizando versões específicas de uma realidade múltipla.

 

Os ideais de objetividade e neutralidade são constitutivos de uma onto-epistemologia estrutural responsável pelo desbravamento da floresta Amazónica, dos desastres de Chernobyl e Fukushima, do aquecimento global e da transformação de pessoas e natureza em recursos humanos e naturais. A silvicultura científica, a disciplina humana e a psicogeografia capitalista são expressões da estreita inter-relação entre saber e poder, reificando a ilusão da objetividade em função dos interesses de elites capitalistas e opressoras.

 

A ideia de conhecimento neutro e objetivo tem vindo a ser estilhaçado pelas críticas pós-estruturalistas, feministas, da teoria crítica, do pós-humanismo e dos estudos de ciência e tecnologia. O lugar de fala da epistemologia objetiva e eurocêntrica tem sido questionado e contraposto a ecologias de saberes e cosmopolíticas que reconhecem o poder emancipatório do conhecimento não-europeu, não-branco, não-moderno e pós-colonial.

 

O sujeito moderno ocidental é frequentemente caracterizado enquanto uma entidade dualista que promove uma separação entre natureza e cultura, humanos e não-humanos, corpo e espírito. A objetividade e neutralidade são constituintes de um aparato abissal de domínio psicossomático, natural e social. O binómio objetividade/neutralidade é um modelo ético-político que contrasta com as ecologias de saberes propostas por Boaventura Sousa Santos.

 

O reconhecimento da pluralidade de saberes, vinculados a diferentes grupos sociais, coletivos e contextos geográficos, implica uma visão que assenta na justiça cognitiva, substituindo o epistemicídio pelo direito à existência de epistemologias não-brancas e não-ocidentais. O conhecimento é sempre situado, e os movimentos sociais frequentemente recorrem à produção de epistemologias que contrastam com o paradigma dominante.

 

No caso das controvérsias sociotécnicas, as alternativas ao necrocapitalismo genocida das multinacionais do Norte Global passam pela partilha de conhecimentos, ontologias, elementos culturais e materiais que permitem aos movimentos sociais desconstruir a versão “dominante” da narrativa. Casos como a luta antinuclear em Portugal ou o Tribunal Monsanto reforçam a dimensão profundamente política da produção de conhecimento e como a opressão tecnopolítica, apesar de se apresentar enquanto objetiva e neutra, reflete os interesses dos grupos exploradores.

 

As sociedades contemporâneas estão atualmente sob um ataque dos populismos de extrema direita, do fascismo social, da degradação ambiental e das alterações climáticas. É necessário reinventar o modelo eurocêntrico do conhecimento e reconhecer que a matriz da tecnociência, desenvolvida em parte graças à ambição universalista do Ocidente, se traduziu na emergência de uma nova era geológica – o Antropoceno – marcada por uma expansão capitalista e extrativista sem precedentes.

 

O Antropoceno exige não só uma alteração radical da relação entre humanos e natureza mas também uma reconfiguração da matriz poder/conhecimento. A modernidade capitalista é incapaz de produzir alternativas às entropias autofágicas que atualmente consomem corpos, ecossistemas e utopias. Só através do recurso cosmopolítico aos imaginários não-modernos será possível a produção de respostas suficientemente robustas para fazer face aos desafios ecológicos, políticos e ontológicos de uma modernidade consumida pela sua própria húbris. Ao binómio objetividade/neutralidade contrapomos uma coreografia ecológica e cosmopolítica suportada pelo reconhecimento entre culturas, espécies e subjetividades, uma solidariedade intersecional e emancipatória capaz de produzir uma não-modernidade pós-abissal.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Foucault, M. (1980), “Truth and Power”. In Gordon, C. (Ed.). Power/Knowledge - Selected interviews & other writings 1972-1977. Brighton: The Harvester Press, 109-133.

Jensen, C. B., Ballestero, A., de la Cadena, M., Fisch, M., & Ishii, M. (2017), “New ontologies? Reflections on some recent ‘turns’ in STS, anthropology and philosophy”, Social Anthropology, Vol. 25(4), 525-45.

 


António Carvalho é Investigador do CES. É doutorado em Sociologia pela Universidade de Exeter. Tem realizado investigação na área dos estudos de ciência e tecnologia. O seu trabalho atual explora as ramificações entre o Antropoceno, tecnologias emergentes, política e afeto.

 

 

Como citar

Carvalho, António (2019), "Objetividade/Neutralidade", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24441&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9