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Maria Irene Ramalho

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Antepassados

Catarina Laranjeiro
Publicado em 2019-04-01

Conheci um homem que se chamava Flac. Na sua língua, Flac significava Floresta. Flac tinha o poder de curar os outros e de adivinhar o futuro. Um dia, perguntei-lhe como tinha aprendido a sua arte. Ele disse-me que foram os seus ‘mortos que voltam e se sentam na sua cabeça para lhe dizerem tudo sobre como curar’.  Os mortos tal como as sementes são enterrados. A agricultura é uma técnica da fertilidade, da vida que se reproduz multiplicando-se. Os mortos são particularmente atraídos por este mistério do renascimento. Semelhantes às sementes enterradas na terra, os mortos também regressam à vida. Antepassar. Passar antes de. Quem passou antes, que efeitos tem em nós?

 

Walter Benjamin dizia que nem os mortos estão seguros se o inimigo vencer (2008:11). Ensinou-nos muito sobre fantasmas. Que aqueles que nos antecedem, tem o poder de moldar a nossa existência. Assombram-nos, perseguem-nos, ensombram-nos. No contexto ocidental, o fantasma funciona como uma metáfora poderosa servindo para explicar ou revelar a presença de quem nos antecedeu. Essa presença é sempre espectral ou diluída. Mas o que é afinal um fantasma? É a presença de uma ausência. De algo que foi no passado, uma ausência que ganha corpo no presente. E um espírito? Não será a manifestação visível da ausência? Tudo oscila entre a metafísica e o materialismo em si.

 

Para Flac – e para muita gente, talvez a maior parte do mundo – a presença dos antepassados molda efetivamente o quotidiano. São contextos em que os fantasmas não existem. Existem espíritos, porque as almas permanecem vivas. Falemos de espíritos ou de fantasmas, o futuro é sempre negociado com quem já morreu. Hannah Arendt falou-nos de Lacunas, alertando que era nas fissuras entre o passado e presente que nos devemos instalar. Será que é nessas fissuras que vivem os nossos antepassados? O passado traz consigo um índex secreto que o remete para a redenção, escreveu Walter Benjamin (2008: 9-10).

 

Um dia no norte de Portugal, passeava no Trilho do Megalítico de Castro Laboreiro, uma paisagem a perder de vista cheia de Dolmens. Pensar nas gentes que aí estiveram há quase 7000 anos a prestar adoração aos seus mortos. Já eles tinham antepassados. Hoje, nesse mesmo sítio, outros rituais têm lugar: a encomendação das almas, o milho para as almas, as procissões ao cemitério, entre outras. É a expressão popular “os mortos pertencem aos vivos”.

 

Em Unal, a aldeia na Guiné-Bissau onde conheci Flac, cada vez que morria uma mulher, íamos todas à bolanha, porque acreditam que quando uma mulher morre, a alma dela vai para a bolanha e temos de ir lá buscá-la para fazer o funeral. Untávamo-nos de lama, dançávamos. Todas nos ríamos e bebíamos excessivamente. Tudo se justificava em prol de uma boa colheita, isto é, a fertilidade de todas as mulheres presentes e muito arroz. Em muitos lugares do mundo, os cultos funerários, agrários e de fertilidade confundem-se, fundem-se. Os mortos são chamados para tomarem parte nos ritos de fertilidade dos vivos, assegurar a continuidade.

 

Boaventura de Sousa Santos sugere que a presença ou a relevância dos antepassados em diferentes culturas deixa de ser uma manifestação anacrónica de primitivismo religioso ou de magia para se tornar uma forma de viver a contemporaneidade (2006b). Alerta-nos para a necessidade de se estabelecer um compromisso com as vozes ausentes das narrativas hegemónicas, que se possam materializar sobre outras formas e que não surjam nem da tecnologia, nem da ciência. Mas a sociedade moderna também é velada por antepassados. Só que são corporizados de outras formas. Igrejas católicas repletas de santos, intermediários com Deus, humanos como nós. Já morreram ou continuam vivos?

 

Os antepassados transpõem uma fronteira que parece separar mundos - o dos mortos e o dos vivos -  inconciliáveis. E é por isso que é transversal a todos os espaços e tempos. Porque atravessam o espaço e o tempo. Ou melhor, antepassado é aquele que permite a intermediação com o tempo e o espaço em vários planos distintos. Todo aquele que é humano acredita que é eterno. Para tal, é necessário garantir uma existência contínua. Emerge a pergunta: quem precisa mais, os vivos dos antepassados ou os antepassados de quem está vivo? Quem depende de quem para existir?

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Arendt, Hannah (1972), Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.

Benjamin, Walter (2011), O Anjo da História. Lisboa: Assírio & Alvim.

Santos, Boaventura de Sousa (2006a), “A queda do Angelus Novus: o fim da equação moderna entre raízes e opções”, in Santos, Boaventura de Sousa (org.), A Gramática do Tempo, para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 47-84.

Santos, Boaventura de Sousa (2006b), “Uma sociologia das ausências e das emergências”, In Santos, Boaventura de Sousa (org), A Gramática do Tempo, para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 87-124.

 

Catarina Laranjeiro é doutoranda em Pós-Colonialismo e Cidadania Global pelo CES-UC, tendo a sua tese se debruçado sobre o cinema de libertação na Guiné-Bissau.

 

Como citar

Laranjeiro, Catarina (2019), "Antepassados", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24461&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9