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Quilombo

Shirley Aparecida de Miranda
Publicado em 2019-04-01

Quilombo condensa acepções atribuídas a um fenômeno histórico e político que tiveram lugar nas sociedades escravistas modernas. As comunidades resultantes de fugas do cativeiro receberam, no Brasil, a designação de mocambos, posteriormente, quilombos. Estratégia similar se observará na experiência constituída pelos africanos da diáspora no continente americano, como no Haiti e outras partes de Caribe francês (marronages), na Jamaica e Caribe inglês (marrons), na Colômbia (palenques) e em Cuba (cimarronaje).


Ao longo de mais de dois séculos, os significados de quilombos no Brasil e suas implicações na dinâmica política têm sido alvo de contestações. A designação colonial expressa nos autos do Conselho Ultramarino, em 1740, remetia a “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles” (Moura, 1981: 25). Os elementos dessa definição persistiram em práticas discursivas até ao século passado, quando a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) assumiu outra acepção referindo-se às comunidades remanescentes de quilombos, grupo formador da sociedade brasileira.


É notável a persistência da acepção criminal atribuída aos quilombos no Brasil em práticas discursivas que vão desde livros didáticos e de literatura infantil até o aparato midiático, a evidenciar aquilo que a sociologia das ausências classifica como “produção ativa da invisibilidade”. A conjugação de lógicas – como a da classificação social que impõe a naturalização das diferenças; e a da escala dominante, que opõe o global ao local – atuam de modo a conferir inexistência ao aquilombamento. Quilombo prossegue como fenômeno relegado à escravidão no Brasil e as comunidades quilombolas, presas ao passado, marcadas por ignorância e improdutividade.


A emergência das comunidades negras contemporâneas, rurais e urbanas, que resistiram aos artifícios de apagamento material e simbólico a que foram submetidas perfaz uma “sociologia das emergências” (Santos, 2004). As comunidades quilombolas definem-se pelo modo como concebem o território, pelas noções de coletividade, ancestralidade comum e relações de parentesco.


O significado de quilombo se estabelece numa composição dialógica tensionada por lutas por emancipação e, portanto, em nenhum momento histórico assume uma definição fixa. Ao longo dos anos de 1970, no contexto das lutas por redemocratização do Estado brasileiro imerso no golpe, entidades do movimento negro apresentavam como herói Zumbi dos Palmares, líder do quilombo que no século XVI chegou a ser registrado como República de Palmares. Em 1995, um ato conjunto reuniu o movimento negro brasileiro, centrais sindicais e diversas organizações do movimento popular, na realização da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida. Esse ato demarcou o dia da consciência negra, intrinsecamente relacionado com Zumbi e o quilombo de Palmares. No âmago dessa fecunda expressão ocorrem as formulações de intelectuais negros, que conjugam quilombo com a ancestralidade cultural africana e a resistência política na ação de libertação da escravidão. O termo “quilombismo” emergiu como síntese de diversos aspectos: a remissão à ancestralidade africana não escrava e organizada politicamente; a experiência coletiva constituída pelos africanos da diáspora; a identificação dos vários deslocamentos e territórios que constituem as aglomerações negras. Conforme Nascimento, “quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (1994: 348). Ao tomar por base um modelo político que pretenderia a vida coletiva, a autora instigou a compreensão sobre a prática de “aquilombar-se” como forma de entender a lógica da resistência na diáspora.


Chegamos ao século XXI sob os efeitos de um deslocamento discursivo no qual a persistência da noção criminalizada de quilombo é conturbada pela emergência de uma acepção na qual quilombo inscreve-se no registro de contraposição e resistência à ordem colonial.


A construção de um conceito contemporâneo para comunidade remanescente de quilombos a funcionar como operador jurídico se materializou no Decreto Federal 4.887/2003, que regulamenta os procedimentos de emissão dos títulos de posse de terra.
Art. 2º – Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (Brasil, 2003).


Os distintos significados de quilombo demonstram uma identidade negociada forjada no decorrer de processos de invisibilidade ativamente produzida e de visibilidade insurgente. A inauguração de “quilombolas” como viáveis sujeitos de direitos traz à tona o problema do reconhecimento de direitos coletivos, desafiando um dos pilares dos Estados Nacionais, qual seja, o direito individual cristalizado na propriedade.


Referências e sugestões adicionais de leitura:
Moura, Clóvis (1981), Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas. [3.ª ed.]
Nascimento, Beatriz do (2007), “O Conceito de Quilombo e a Resistência Cultural Negra”, in Alex Ratts (org.), Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Kuanza, 117-125.
Santos, Boaventura de Sousa (2004), “Por uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 777-821.


Shirley Aparecida de Miranda é professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, investigando os temas de Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas. É licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil).

 

Como citar

Miranda, Shirley Aparecida de (2019), "Quilombo", Dicionário Alice. Consultado a 19.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24498&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9