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Saúde Intercultural

Alice Cruz
Publicado em 2019-04-01

O termo remete para projectos distintos que denunciam lógicas políticas antagónicas, uma de cima para baixo, outra de baixo para cima. Por um lado, pode referir-se a um encontro clínico de perfil biomédico em que médico e paciente pertencem a diferentes culturas e no qual se busca superar as barreiras linguísticas e culturais entre ambos. Por outro lado, pode indicar a cooperação entre diversos sistemas médicos, colocando-os em diálogo, mas também aos aspectos mais amplos das culturas a que pertencem, como língua, epistemologia e cosmovisão ou conceitos de corpo, pessoa, saúde e doença. Se ambos requerem uma metodologia de tradução, a verticalidade do primeiro e horizontalidade do segundo distanciam o seu alcance e resultados, confinando-se os primeiros à melhoria da qualidade da atenção e concomitante satisfação do paciente e produzindo os segundos novas configurações epistemológicas com corolários políticos na justiça social. Não obstante, a saúde intercultural, no seu conjunto, não falha em inovar, por exemplo face ao pluralismo médico ou a um mercado médico de medicinas complementares, pela práctica de interconsultas e de edificação de espaços físicos interculturais que intercambiam diferentes saberes médicos, mas também sistemas de vida.


Pode-se argumentar que a interculturalidade é uma realidade inerente a qualquer encontro terapêutico ou sistema médico. Ainda assim, a interculturalidade aplicada à saúde como projecto, estratégia e metodologia tem raiz num processo histórico específico que se imbrica nas populações originárias da América do Sul. Os primeiros usos do termo encontram-se na região na remota década de 1950, caindo posteriormente no esquecimento, e sendo resgatado nas últimas décadas do século XX que o constituíram num consenso, não somente regional, mas também global. Porém, o projecto da saúde intercultural, hoje perspectivado pelas agências transnacionais de regulação da saúde como aplicável a realidades e grupos outros que não apenas as populações indígenas (como imigrantes e minorias étnicas e sexuais), oculta genealogias e entendimentos distintos, que o enquadram e modelam em políticas e estratégias marcadamente diferenciadas.


A genealogia mais noticiada estabelece como propulsor o reconhecimento internacional de direitos aos povos indígenas, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989) ou pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2006) ou, entre ambas, pela Iniciativa da Saúde dos Povos Indígenas das Américas da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (1993). Do seio desta genealogia, ancorada no programa de Alma Ata (1978), nasceu a aplicação da interculturalidade como estratégia de saúde pública direccionada a minorar as desigualdades em saúde das populações indígenas e afrodescendentes. Identificando o racismo e a discriminação como barreiras ao acesso à saúde, os projectos a que deu azo privilegiam a chamada competência cultural e linguística dos agentes biomédicos e o emprego de mediadores e/ou médicos denominados tradicionais na educação em saúde ou em alternativa à inexistência de serviços de saúde oficiais. Este modelo reduz a interculturalidade aos seus aspectos comunicacionais.


Outra genealogia traça a emergência da saúde intercultural no lastro das lutas pela auto-determinação dos povos indígenas que, entre outras reivindicações, impuseram na agenda política dos Estados a descriminalização e reconhecimento da medicina própria e dos seus produtores e practicantes. Neste contexto, não apenas a criação de quadros legais para as medicinas indígenas ou o resgate de saberes sujeitos ao epistemicídio foram logrados. Também foi conquistada a implementação de serviços de saúde geridos pelas populações e comunidades indígenas, de que são exemplos as experiências Zapatistas em Chiapas (México) ou Kichwa em Cotacachi (Ecuador). Destas lutas nasceram, ainda, novas constituições que, no caso do Ecuador (2008) e da Bolívia (2009), conduziram, com base nos direitos colectivos outorgados às populações indígenas, a estruturas de decisão e planeamento de saúde indígena e intercultural dentro dos ministérios de saúde dos países. A interculturalidade aplicada à saúde, tal como é proposta pelas organizações indígenas, é inseparável da autonomia.


Destes processos disseminaram-se projectos de saúde intercultural pela região latino-americana, mas também por outras, como a Oceânia com populações originais e a Europa com imigrantes. Diferenciando-se nas suas orientações paradigmáticas (uns mais baseados na ênfase comunicacional, outros na autonomia) e no nível de governamentalidade (uns locais e promovidos por organizações não governamentais, outros nacionais e estatais), têm em comum problemas e oportunidades que ensinam que, para que a saúde intercultural se converta numa ecologia de saberes, necessita, por um lado evitar a apropriação de um saber pelo outro (como sucede em muitos casos) e, por outro lado envolver os agentes e comunidades dos saberes não biomédicos na toma de decisões, gestão, prácticas e avaliação das mesmas, descartando, ainda, uma conotação minoritária para se assumir como alternativa para a melhoria do cuidado da população em geral.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Fernández-Juárez, Gerardo (org.) (2006), Salud e interculturalidad en América Latina: antropología de la salud y crítica intercultural. Quito: Abya-Yala.
Ministerio de Salud Pública (2010), Salud, interculturalidad y derechos: claves para la reconstrucción del Sumak Kawsay – Buen Vivir. Quito: Abya-Yala.

 

Alice Cruz é antropóloga e doutorada em Sociologia. É Relatora Especial das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as pessoas Afetadas pela Lepra e seus Familiares. Foi professora na Universidade Andina Simón Bolívar (Equador) e investigadora do Projeto ALICE do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

 

Como citar

Cruz, Alice (2019), "Saúde Intercultural", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24534&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9