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Sofrimento

Júlia Garraio
Publicado em 2019-04-01

De origem latina (suferĕre, por sufērre “suportar”), a palavra sofrimento pode significar “dor física ou moral”, “capacidade de suportar os males com paciência e resignação” e “dificuldades sentidas por alguém” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001), sentidos que nos apontam para a amplitude do termo, não só pelas várias dimensões implicadas (física, psicológica, emocional), mas sobretudo por existir numa teia de significação onde se cruzam outros conceitos tão ou mais complexos, como dor, doença, mal, vulnerabilidade, tristeza. Não é assim de estranhar que a reflexão sobre o sofrimento acompanhe a história da humanidade, sendo provavelmente um dos conceitos mais presentes no discurso religioso, na filosofia e nas artes.


Num texto fundador da cultura europeia (Poética), Aristóteles, ao definir a tragédia, estabelecia uma ligação entre o espetáculo do sofrimento alheio, o prazer estético e o enobrecimento moral do espetador (e consequentemente da sua comunidade). Vislumbram-se aqui duas vertentes interligadas entre si que marcam a reflexão sobre o sofrimento ao longo dos séculos: a razão da sua existência (as suas causas e funções) e a questão da sua representação/mediatização. Como fazer sentido da existência do mal (e assim do sofrimento dos inocentes) num mundo que se pressupõe ter sido criado por um deus bondoso é uma questão que, embora conotada com a influente teodiceia de Leibniz, lhe é muito anterior. Esta demanda é central, por exemplo, nos textos bíblicos em que se funda o cristianismo. É inegável que, nas culturas cristãs, o sofrimento goza de uma longa tradição de significação eufórica que está longe de se limitar ao carácter salvífico dos textos fundadores do cristianismo (veja-se a este propósito as epístolas de São Paulo sobre o sofrimento terreno como passo para a redenção do espírito). Um Montaigne, por exemplo, via na doença que tanto o fazia sofrer uma revelação da mortalidade, enquanto Schopenhauer valorizava a consciência da centralidade do sofrimento como pressuposto para o conhecimento.


Paralelamente, é igualmente possível constatar, na história da humanidade, uma tradição disfórica do sofrimento, sobretudo no contexto de determinadas doenças (a lepra, por exemplo). Em Illness as Metaphor (1978) e AIDS and its Metaphors (1989), Susan Sontag analisa as metáforas de certas doenças argumentando que estas adensam o sofrimento das vítimas ao as estigmatizarem como pertencentes a determinados grupos sociais associados a comportamentos de risco, assim reforçando a exclusão social dos doentes (por exemplo, os homossexuais e os toxicodependentes no caso do SIDA).


A reflexão de Sontag conduz-nos à segunda dimensão acima apontada, a representação. Enquanto experiência individual, o sofrimento é uma vivência subjetiva que terá de ser mediada para os/as outros/as, para quem existe como imagem ou discurso, ou seja, como representação resultante de um processo de seleção (de quem é o sofrimento representado? qual o ângulo adotado na representação?). Dar a conhecer o sofrimento é assim traduzi-lo, “recriá-lo”, numa linguagem que existe como instrumento de uma cultura estruturada em torno de relações de poder para que um/a outro/a o possa imaginar. Neste sentido, a famosa questão levantada por Gayatri Spivak – “Can the subaltern speak?” (1983) – impõe-se: quem são aqueles/as capazes de fazer ouvir o seu sofrimento? A resposta não se esgota na questão do privilégio, no poder da representação, no acesso aos meios de comunicação e à linguagem do poder. Prende-se também com os sentidos adquiridos pelo sofrimento, com os “filtros” que moldam a reação de um eu situado no espaço e no tempo ao sofrimento de um outro também situado: a quase unanimidade na repulsa perante a tortura de um bebé perde-se se a vítima for um adulto suspeito de atos considerados monstruosos pela comunidade (pedofilia) e/ou de deter informação capaz de evitar mortes (membro de uma célula terrorista).


De facto, a regulamentação da aplicação do sofrimento como forjador de ordem é inerente ao projeto da modernidade, daí resultando todo um conjunto de reflexões e legislações que se esforçam por distinguir a violência ilegítima (condenável) da violência legítima (usada na criação do que se reclama ser um mundo melhor). Foucault expôs, através do espaço prisional como processo disciplinador, o papel da punição como técnica de poder na modernidade. Mais recentemente, Judith Butler (2004) mostrou, no contexto das guerras contemporâneas do Médio Oriente, como a distinção e hierarquização dos indivíduos segundo a sua posição geopolítica e sociocultural determina o que vale como humano e consequentemente o grau de empatia perante o sofrimento e a morte dos/as outros/as.


Como bem notou Sontag, a visibilização do sofrimento por si só não basta para desafiar a realidade: “To designate a hell is not, of course, to tell us anything about how to extract people from that hell, how to moderate hell's flames.” (2003: 114). Boltanski (1993) via na ficção (obras literárias, cinema, séries televisivas) – o sofrimento como espetáculo – meios capazes de, pela imaginação de vozes, se criar empatia pelo sofrimento alheio. De facto, a arte tem sido o meio privilegiado para fomentar a consciência da vulnerabilidade que Butler apontou como sendo a base para imaginar a possibilidade de uma comunidade humana.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Boltanski, Luc (1993), La souffrance à distance. Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié.
Butler, Judith (2004), Precarious Life: The Powers of Mourning. London and New York: Verso.
Sontag, Susan (1989), AIDS and its Metaphors. New York: Farrar, Straus and Giroux.
Sontag, Susan (2003), Regarding the pain of others. New York: Farrar, Straus and Giroux.

 

Júlia Garraio é investigadora do Centro de Estudos Sociais, Coimbra. Doutorada em Literatura Alemã. Os seus atuais interesses de investigação incidem sobre violência sexual, masculinidades, feminismo, memória, nacionalismo, populismo, literatura comparada e media. É investigadora do projeto (De)Othering: Desconstruindo o Risco e a Alteridade (Referência: POCI-01-0145-FEDER-029997).

 

Como citar

Garraio, Júlia (2019), "Sofrimento", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24552&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9