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Biodiversidade

Rita Serra
Publicado em 2019-04-01

No mundo ocidental, o interesse na biodiversidade é proporcional ao seu desaparecimento. Apesar da biodiversidade ser um termo recente (utilizado pela primeira vez em 1985), o seu uso foi rapidamente popularizado dentro e fora da comunidade científica. No seu sentido mais amplo, diz respeito a todas as manifestações de vida nas suas infinitas variações, desde a escala dos genes até aos ecossistemas. No entanto, a amplitude do termo pode torná-lo irrelevante ou mesmo contraproducente precisamente à escala onde se travam as lutas pela existência de formas diferentes de ser.


O termo biodiversidade retira significado às lutas quando o particular é sempre demasiado pequeno face a uma escala de variabilidade que é sempre grande demais. Os seres vivos partilham uma grande parte do seu ADN, e é muito provável que as instruções bioquímicas básicas para a existência no planeta Terra estejam reunidas nos bancos genéticos dos países ocidentais. A maior parte da biodiversidade é constituída por bactérias, fungos e insetos, está sujeita a processos evolutivos com milhões de anos, bem como sucessivas extinções em massa. No entanto, a singularidade duma espécie excede em muito o seu código genético. Afinal, partilharmos 98% do nosso ADN com os chimpanzés diz tanto sobre nós próprios como partilharmos 25% do nosso DNA com uma abrótea (Marks, 2002), e saber que há mais micróbios do que qualquer outro ser no planeta não compensa saber que 50% dos animais poderão vir a ser extintos.


Sempre que a biodiversidade é reduzida a uma listagem de processos bioquímicos funcionais, e sempre que a diversidade de espécies é equiparada a uma coleção de selos, a conservação da biodiversidade passa a ser feita por colecionadores poderosos que procuram açambarcar o maior número de itens possível cujo valor aumenta com a raridade. Especialmente nos espaços coloniais, o imperativo global de salvar as espécies é usado para desapossar as comunidades locais dos seus bens comuns, muitas das vezes integrais aos seus modos de vida e às suas formas únicas de serem humanos (Santos, 2004).


A biodiversidade adquire significado sempre que o particular se torna numa singularidade irredutível à escala do aqui e do agora. Quando as categorias não são para demarcar as diferenças mas sim uma porta para conhecer o outro e a sua história. Quando a erradicação duma forma de ser deixa as outras amputadas nas suas próprias histórias. A biodiversidade ganha significado quando faz parte de nós, dos nossos modos de ser e nos vincula a um certo tempo e lugar. São as espécies que nos acompanham, ou nos termos de Donna Haraway (2008), as espécies companheiras que fazem parte do nosso corpo e se comunicam ao nosso carácter. É a floresta de múltiplos usos e valores, é a serra coberta de urzes e torgas, é a nossa arca de culturas e gostos, o feijão cara de coelho, o morangueiro e as infinitas variedades com que educamos a nossa sensibilidade. É o lince, o lobo e as espécies silvestres que contrariam a nossa domesticação e alimentam o nosso nomadismo. São os bens comuns que incorporamos como povo e que nos levam a lutar como seres situados contra a redução da nossa existência.


Celebrar a biodiversidade é celebrar também a variabilidade da espécie humana. Aceitar a variabilidade na espécie humana é lutar contra uma biopolítica que impede milhões de seres humanos de levarem vidas autênticas e que desumaniza, inferioriza ou impede o nascimento dos que não se conformam com a eugenia dominante. Um exemplo recente de luta é o movimento da neurodiversidade que pretende a aceitação de múltiplas configurações neurológicas que produzem diversas formas de sentir, de conhecer o mundo e de comunicar.


A ciência moderna tem muita dificuldade em apreender a biodiversidade no seu sentido irredutível, seja no campo da biologia ou das ciências sociais. É necessária a emergência de outros naturalismos que não separem a natureza da cultura e a matéria do seu significado. O naturalismo feminista de autoras como Donna Haraway (op. cit), também designado por novo materialismo, procura investigar em conjunto com as ciências naturais que outros mundos podem ter lugar quando as formas dominantes de identidade humana são postas em causa.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Marks, Jonathan (2002), What it means to be 98% chimpanzee: apes, people, and their genes. Berkeley: University of California Press.
Santos, Boaventura de Sousa (2004), Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento.
Haraway, Donna Jeanne (2008). When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press.

 

Rita Serra é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, integra o Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e Sociedade (NECES) e o Observatório de Risco (OSIRIS). É doutorada em Engenharia Química e Biológica e dedica-se atualmente ao estudo da governação comunitária das florestas.

 

Como citar

Serra, Rita (2019), "Biodiversidade", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24614&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9