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Cidadania

José Manuel Mendes
Publicado em 2019-04-01

Para pensar a noção complexa de cidadania podemos partir da ideia simples de que o Estado, nas suas diferentes incarnações históricas, pode, no limite, sobreviver e passar sem cidadãos ou cidadãs. A arbitrariedade e a contingência da relação Estado-cidadãos/cidadãs, a ficção da comunidade imaginada, pode sempre ser suspensa, colocada em causa por situações de exceção ou de limite, ou por estados de exceção permanentes. Em última instância, todos os cidadãos e cidadãs podem ver a sua relação fictícia com a entidade estatal e o seu estatuto outorgado de cidadania colocados em questão.


Tanto no Norte como no Sul, não esquecendo séculos de opressão e de dominação coloniais e neocoloniais, todos os cidadãos e cidadãs integrados/as em Estados e/ou nações podem descobrir, no jogo difrativo de imagens, discursos e práticas relacionados com acontecimentos de exceção, a fraqueza do Estado como um terapeuta global imaginário dos seus cidadãos e das suas cidadãs.


A cidadania pode ser definida como o laço de pertença a uma unidade ou a um corpo político, que prende, protege e assegura a circulação num espaço delimitado. Esse laço assume duas dimensões: a vertical entre a entidade ou corpo políticos e os cidadãos e cidadãs (na perspetiva de Hobbes e dos neo-Hobbesianos) e a horizontal entre cidadãos e cidadãs (na perspetiva originária de Rousseau). As duas dimensões estão intimamente imbricadas, e o fortalecimento de uma resulta no fortalecimento da outra, enquanto o enfraquecimento de uma origina o enfraquecimento da outra.


Mais do que postular a cidadania como um destino partilhado entre iguais ou, na lógica do contrato social, como o direito a ter direitos, podemos definir cidadania como as pertenças que criam e permitem uma vida digna. Ou seja, a dignidade é a possibilidade de viver e expressar as múltiplas pertenças de cada indivíduo ou grupo. Mas, devemos perguntar a quem e a quê pertencemos. O que nos permitem as pertenças fazer, e o que restringem ou proíbem? Os espaços democráticos convencionais permitem essa expressão das pertenças múltiplas? Que pertenças são mobilizadas para oprimir ou suprimir os outros? Que pertenças podem ser emancipadoras?


A definição eurocêntrica de cidadania assenta na relação complexa e mutável entre democracia, nacionalismo e sociedade civil, consignada pela força da lei aplicada a um dado território ou espaço. O estabelecimento de processos de progressão dos direitos cívicos, aos direitos políticos e sociais, da própria separação entre sociedade civil e sociedade política, ou a diferença entre as conceções liberal e republicana de cidadania, não revelam um dado essencial: a cidadania pode ser excludente.


Numa perspetiva das epistemologias do Sul há que interrogar o conceito de cidadania a partir dos não-cidadãos, dos que ficam de fora, sem direitos e garantias, e também sem deveres. Incluindo também os que, embora nominalmente cidadãos ou cidadãs, são considerados/as descartáveis ou remetidos a uma cidadania invisível. O Estado é o mediador e o recurso de última instância que legitima a integração das sociedades no capitalismo global, e a linha abissal que define os integrados e os descartáveis ou invisíveis percorre tanto o Sul como as "pequenas colónias" do Norte, tanto as lógicas de regulação/emancipação como as de apropriação/violência que existem tanto no Norte como no Sul globais.


A abordagem às questões mutáveis sobre cidadania deve assentar na visibilização dos ausentes, porque não-humanos, sub-humanos ou humanos disfuncionais. Mas, também nas lutas, resistências e exigências que criam comunidades hermenêuticas potenciadoras de uma maior inclusão, de pertenças dignas, do direito à vida plena.


Tomando o corpo como o território último, é na sua diferença, na sua indeterminação, que os corpos em sofrimento e em luta em possíveis coletivos, quando convertidos e mobilizados numa estratégia política para exigir cidadania e a integração num dada entidade política, podem revelar a possibilidade de alternativas à opressão e à exploração do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo.


Podem os corpos em presença, pela ação colectiva e pela resistência, e de forma performativa, obrigar o poder político à restituição da dignidade, ao reconhecimento das pertenças? O importante é a construção de contra-narrativas, mobilizadoras e indutoras de uma globalização contra-hegemónica, não baseada na comunhão do sofrimento ou no trauma, mas na convergência de corpos e de performances que sejam moduladores de sentimentos politicamente significativos.


O objectivo é partir de experiências fragmentadas, quase inaudíveis, de murmúrios silenciados, de discursos e práticas que arriscam, que estão atentos à ecologia dos saberes e que contribuem para a construção de um mundo alternativo, baseado na justiça social, na dignidade e na alegria de viver.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Das, Veena (2011), “State, Citizenship, and the Urban Poor”, Citizenship Studies, 15(3-4), 319-333.
Mbembe, Achille (2003), "Necropolitics", Public Culture, 15(1), 11-40.
Santos, Boaventura de Sousa (2015), Epistemologies of the South. Justice Against Epistimicide. Boulder (CO): Paradigm Publishers.

 

José Manuel Mendes é doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde é Professor Associado com Agregação. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas do risco e da vulnerabilidade social, planeamento, políticas públicas e cidadania. É coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS e Diretor da Revista Crítica de Ciências Sociais.

 

Como citar

Mendes, José Manuel (2019), "Cidadania", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/index.php?id=23838&pag=23918&entry=24630&id_lingua=4. ISBN: 978-989-8847-08-9