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Opinião
Da participação à pertença
Boaventura de Sousa Santos
Público
2021-05-22


Um fantasma assombra o mundo: o regresso da extrema-direita. Trata-se de um movimento global com ritmos nacionais muito diferentes. Tem muitas semelhanças com o que aconteceu nas décadas de 1920 e 1930, mas também tem diferenças. Analiso umas e outras com a crença de que a história só se repete se deixarmos que tal aconteça. Estamos perante movimentos que emergem no bojo de crises sociais por vir e que explodem quando as crises rebentam. Nos anos de 1920, foi a Primeira Guerra Mundial e a crise financeira que se seguiu, a qual viria a explodir em 1929. Hoje, trata-se da crise de acumulação do capital em face das concessões que teve de fazer ao povo trabalhador depois da Segunda Guerra Mundial para poder competir politicamente e com paz social com a opção socialista do bloco soviético. A reacção começou na periferia do sistema (golpes de Estado no Brasil em 1964 e no Chile em 1973) e transformou-se num programa global quando, em 1975, a Comissão Trilateral declarou que a democracia estava sobrecarregada com excesso de direitos. Foi o ataque aos direitos económicos e sociais, à social-democracia, um ataque em que viriam a colaborar os próprios partidos socialistas, com a terceira via de Tony Blair. Depois do ataque às Torres Gémeas (2001) e da crise financeira (2008) começou o ataque aos direitos cívicos e políticos. Estavam criadas as condições para a emergência da extrema-direita.

A crise pandémica e período de pandemia intermitente em que vamos entrar pode ser o detonador da explosão da extrema-direita.
Para a evitar só há uma solução: impedir que a crise social se agrave, o que não foi possível nos anos 1930. Hoje, os EUA de Biden iniciaram com um vasto programa de reconstituição dos rendimentos e de investimento público em contraciclo, contra tudo o que pregaram durante o período áureo do neoliberalismo. A UE, pateticamente, parece mais presa ao neoliberalismo do que os EUA e sempre refém do capital financeiro internacional. A Alemanha cumpre na Europa o papel que os EUA cumprem a nível mundial: exporta o neoliberalismo, mas neste momento não o segue internamente. É uma questão em aberto saber em que medida os programas de recuperação e resiliência conseguirão conter a grave crise social que se aproxima e que tem neste momento três pontos de ruptura: Colômbia, Brasil e Índia. Portugal teria condições privilegiadas de evitar o pior, se soubesse agir como a Alemanha e os países nórdicos: servir-se da Europa como patrão sem servir a Europa como empregado.

A segunda semelhança/diferença diz respeito à relação entre democracia e extrema-direita. A semelhança é que a extrema-direita se serve da democracia com o único objectivo de a destruir. Fá-lo por muitas vias. A principal é promover uma lógica de pertença, seja ela nacionalista ou racista, contra a lógica de participação que é própria da democracia. A diferença é radical e, por isso, invisível. Participamos numa realidade contribuindo para a construir, enquanto pertencemos a uma realidade já plenamente construída (nação, raça, etnia, casta), seja a construção real ou inventada. A pertença confere uma segurança a quem pertence na mesma proporção em que exclui quem a ela não pertence. Em períodos de crise, esta segurança é preciosa. As escolhas em que assentam a participação e a pertença são muito diferentes. Na participação escolhe-se entre; na pertença escolhe-se contra. O objectivo é chegar ao poder democraticamente para depois não o exercer democraticamente. Como, por agora, o objectivo ainda não foi atingido, a extrema-direita alicia facilmente as forças de direita democrática a quem oferece o trampolim da chegada ao poder. A direita confia em poder domesticar a extrema-direita e esta em subvertê-la. Foi assim na Alemanha na década de 1920; é uma questão em aberto o que pode hoje acontecer noutros países. Em Portugal, os intelectuais de direita, interessados ou não na promoção da extrema-direita, seguem todos a mesma linha discursiva: estamos a dar demasiada atenção à extrema-direita e isso favorece-a. Exactamente como na Alemanha no final da década de 1920.

A terceira semelhança/diferença diz respeito ao combate ideológico. Este combate tem quatro frentes: o discurso do ódio visando quem não pertence (seja judeu, cigano, negro, homossexual, comunista, de esquerda e, finalmente, democrata); a infiltração dos meios de comunicação; a substituição da política pela moral; aliciamento de estratos sociais descontentes e emergentes. Com diferenças, todas as frentes estão a ser accionadas. Em Portugal, o discurso do ódio teve um afloramento chocante durante os debates presidenciais e deu para entender que a comunicação social pública estava infiltrada. Essa suspeita converteu-se em realidade com o que se está a passar na Lusa. O substituto do discurso do ódio é a dramatização de todos os erros da governação, sobretudo se esta for de esquerda. Comparativamente, o Governo português tem um dos melhores desempenhos na condução da pandemia e os portugueses entenderam isso cooperando civicamente com as políticas. No entanto, quem seguir os noticiários mais mediáticos (incluindo os da RTP) só vê notícias de fracassos grosseiros, uma dramatização que visa sustentar a ideia veiculada pela extrema-direita da “doença da democracia” e dos “cravos pretos”, que podem justificar “governos de salvação nacional”. Hoje, a extrema-direita dispõe das redes sociais, um poderoso instrumento, sobretudo porque o modelo de negócio que lhes subjaz não lhes permite intervir senão em casos extremos. Hoje, o discurso antipolítico e moralista é a luta contra a corrupção e, sobretudo nalguns países, o conservadorismo evangélico ou católico. Ambos os discursos são projectos globais e têm origem na extrema-direita norte-americana. Hoje, um dos grupos emergentes são as mulheres. Com vista às eleições autárquicas, o Chega recruta nas redes sociais “mulheres dinâmicas e inteligentes”.

A quarta semelhança/diferença diz respeito à reinvenção do passado. Consiste em converter vitórias em derrotas e derrotas em vitórias. Na Alemanha, a paz possível depois da Primeira Guerra Mundial foi convertida em humilhação nacional; a derrota, em algo que só não foi evitado devido à fraqueza dos governantes democráticos. Hoje, em Portugal, os intelectuais da direita aproveitam subliminarmente o resvalamento da participação para a pertença para elogiar o colonial-fascismo salazarista porque devolveu o orgulho nacional aos portugueses, deu mais qualidade à direcção política e, sobretudo, não foi corrupto. Nada disto tem de ser verdade para ser eficaz. É surpreendente (mas com precedentes históricos) que alguns desses intelectuais se esqueçam activamente de eles próprios terem sido excluídos da pertença à sociedade fascista precisamente por quererem exercer participação política. Por sua vez, o Æm do colonialismo, a vitória fundadora da democracia portuguesa, é transformado numa derrota humilhante. Daqui a converter a revolução do 25 de Abril de 1974 num acto terrorista vai um passo.

Para travar a deriva da participação em pertença, a história poderia ensinar alguma coisa, se quiséssemos aprender. Eis um elenco realista de propostas. O agravamento das desigualdades e da crise social tem de ser evitado a todo o custo com políticas de coesão eficazes. Os serviços públicos têm de ser refinanciados e repensados, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. A corrupção tem de ser eficazmente combatida. A oposição de direita democrática deve perder a ilusão de poder domesticar a extrema-direita. O governo de esquerda deve ajudar os outros partidos de esquerda a poderem investir na participação, pois são eles as maiores vítimas da deriva da pertença. Por sua vez, os partidos à esquerda do PS devem assumir que o seu adversário principal é a direita e a extrema-direita, e não o PS. A comunicação social pública tem de ser escrupulosa em liquidar o ovo da serpente onde ele é chocado. Se a preguiça democrática acometer o sindicato dos jornalistas ou a entidade reguladora para a comunicação social, resta esperar que a comunidade dos PALOP suspenda a autorização da Lusa de operar nos seus países até que o jornalista racista seja demitido. Se o não for, será em breve multiplicado por muitos.



Conteúdo Original por Público