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Opinião
Espiritualidade
Boaventura de Sousa Santos
Jornal de Letras
2021-07-27

Pintura de Hokusai

A espiritualidade é sempre a experiência de um encontro especial, não trivial, particularmente intenso da pessoa humana, isolada ou em comunidade, com o que a transcende.  A transcendência é o modo como um ser finito pensa o infinito. A possibilidade deste modo de pensar talvez seja a característica que mais especificamente distingue a vida humana da vida não humana no planeta.  Só que, contraditoriamente, uma das formas de experienciar a espiritualidade consiste em diluir a vida humana num conjunto vital muito mais amplo, concebê-la como uma parte ínfima da totalidade da vida cósmica. Afinal, a vida humana não é mais que 0.01% da vida total existente no planeta terra.

Desta contradição emergem duas modalidades básicas de espiritualidade: a que se alimenta da superioridade da vida humana em relação a toda a outra vida planetária por ser a vida dos únicos seres “espirituais”; e a que floresce na submissão humilde dos seres humanos à avassaladora imensidão da vida cósmica. A primeira modalidade pode designar-se como espiritualidade vertical e a segunda, como espiritualidade horizontal. A primeira atua pela diferenciação e a segunda, pela indiferenciação. Para a primeira, a natureza pertence-nos, para a segunda, pertencemos à natureza.

A espiritualidade de matriz cultural cristã, seja ela religiosa ou secular, é uma espiritualidade vertical. E essa verticalidade é experienciada de duas formas, só na aparência contraditórias. A primeira (verticalidade como subida) assenta na ideia de que só a incomensurável superioridade do ser humano permite a este imaginar e vivenciar a incomensurável superioridade de Deus em relação a ele (a espiritualidade religiosa).  A segunda (verticalidade como descida) consiste na capacidade de ir ao mais íntimo e mais profundo de si para experienciar a paz interior, o verdadeiro sentido da vida ou propósito da existência (espiritualidade não-religiosa).

Esta ideia de dupla verticalidade tem uma muito longa duração histórica. Pode encontrar-se na Bíblia e atingiu a sua expressão mais completa na filosofia de Descartes. A especificidade humana, enquanto ser pensante (res cogitants), consiste em ser ela a única capaz de demonstrar a existência de Deus. As variantes cristã, judaica e islâmica são expressões diferentes da mesma verticalidade dupla que tanto pode permitir como excluir o secularismo. Não se deve, no entanto, confundir espiritualidade cristã com espiritualidade ocidental. No século XVII, o filósofo, bem ocidental, Bento Espinosa, defendeu uma forma de espiritualidade horizontal. 

A espiritualidade de matriz asiática (budista, taoista, sintoísta), africana e indígena americana, australiana ou neozelandesa, é predominantemente horizontal. Ainda que de modos muito diferentes, expressa-se, em geral, na ideia da unidade do ser, da totalidade da existência humana e não humana, de que emana uma energia vital que permeia e vive em tudo, nos seres humanos, nos animais, nas plantas, nos minerais, nos objetos, nos acontecimentos tanto intencionais como fortuitos ou acidentais. Esta unidade ontológica convoca duas ideias fundamentais: a relação íntima de tudo com tudo porque só há uma essência; a solidariedade orgânica entre todos os seres vivos que decorre da essencial complementaridade entre eles. A especificidade do humano tem de ser buscada no seio dessa imensa comunidade de vidas, e não fora dela.

Uma espiritualidade intercultural do cuidado Embora pareça estar para além do utilitário, por que razão a espiritualidade é hoje tão discutida pela psicologia e pela psiquiatria, por que inspira ela a importância do “cuidado espiritual” e está tão presente na literatura da autoajuda ou na indústria da meditação? Não basta separar o utilitário do não utilitário, pois doutro modo será difícil explicar a lógica profunda da publicidade ligada ao consumo de massas. A publicidade é a engenharia da criação de uma aura à volta dos objetos de consumo para que eles signifiquem dimensões não utilitárias que estão para além deles – como felicidade, bem-estar, paz, virtude, autoestima – mas que não podem ser atingidas sem eles. Por outras palavras, o material também é espiritual, e este último não existe sem aquele. A não-utilidade do utilitário compete hoje eficazmente com a utilidade do não-utilitário.

A corrente da alienação consumista só se quebra quando o espiritual pode ser experienciado sem qualquer outra referência material que não seja o corpo individual ou a comunidade de corpos que tornam possível a experiência espiritual. No budismo e no misticismo é o próprio corpo que idealmente se anula. A espiritualidade pode ser um subproduto da alienação consumista, mas, por outro lado, ela é hoje um dos veículos possíveis de superação dessa alienação e, nessa medida, a sua utilidade (não-mercantil) é preciosa. Designo tal utilidade por cuidado. O cuidado é toda a relação de reciprocidade que não depende de critérios mercantis nem de imposições jurídicas.

A nível mais profundo, a espiritualidade pressupõe uma ontologia relacional, tal como a que propõe a filosofia africana do ubuntu da África austral: “Eu sou porque tu és”. Esta filosofia está ancorada numa ideia de espiritualidade horizontal e parece-me mesmo mais pertinente no nosso tempo que o mandato bíblico “ama o próximo como a ti mesmo”, ancorado numa espiritualidade vertical.  A proposta de cuidado é aqui ambígua, não só porque dá prioridade ao cuidado de si sobre o cuidado do outro, como também porque impõe o cuidado de si como critério para o cuidado do outro. É uma outra forma de altruísmo feita de egoísmo.

Mas não tem de ser assim se o próximo for tudo, não for apenas o espelho do eu, mas a janela aberta para o mundo onde todos estão e são. Para isso, há que recorrer à espiritualidade horizontal, a que melhor se adequa a uma ampla ética e política de cuidado. De uma perspetiva eurocêntrica dir-se-á que o cuidado abrange não apenas a vida humana como também a vida não humana. Perante a iminência de catástrofe ecológica em que nos encontramos, o cuidado com a natureza é tão importante como o cuidado com a vida humana. É que hoje, em pleno antropoceno, a pandemia do coronavírus está a advertir-nos de que, a menos que mudemos decisivamente os modelos de produção e de consumo que sobrecarregam em excesso os ciclos vitais da natureza, estaremos condenados a viver numa época de pandemia intermitente, pondo em risco, em última instância, a sobrevivência da vida humana no planeta.

O cuidado com a natureza não implica deixá-la intocada ou venerá-la, à la New Age. Implica inventar novas formas de lidar com ela adaptadas ao mundo tecnológico de hoje, mas que sigam o mesmo princípio do caçador africano ou indígena. Este não mata o antílope ou a onça-pintada por desporto ou para ficar rico.  Mata para comer e com pleno respeito pelo animal morto. É assim também que se cultiva a terra e se colhem os frutos ou se cortam árvores. J

A espiritualidade é sempre a experiência de um encontro especial da pessoa humana, isolada ou em comunidade, com o que a transcende.  A transcendência é o modo como um ser finito pensa o infinito



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