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Deus

Teresa Toldy
Publicado em 2019-04-01

Segundo Johann Baptist Metz, a pergunta fundamental acerca de Deus não é “quem é Deus?”, mas sim: “Onde está Deus?” (2007). Esta pergunta aponta para uma relação: quem é Deus para o sujeito? Mas, perguntar-se “onde está Deus?” constitui também um desafio às próprias representações de Deus, uma vez que coloca uma questão crítica: e se as representações de Deus forem impeditivas de um relacionamento do sujeito com o divino?

 

As teologias feministas e as teologias pós-coloniais colocam o dedo nesta ferida aberta. Ficou na história da teologia a afirmação lapidar de Mary Daly: “if god is male, then the male is god”. A patriarcalização das representações de Deus levou, no cristianismo, à identificação de Deus com a figura do pai todo-poderoso e ao recurso a esta imagem para legitimar e reforçar a estrutura social patriarcal. A missionação cristã, por seu turno, constituiu uma peça fundamental de uma colonização que colocava o homem branco no topo da hierarquia social, à semelhança de um Deus apresentado como um senhor branco. De facto, a postura crítica das teologias pós-coloniais face às representações de Deus poderia ser igualmente sumariada na afirmação: “if god is white, then the white (“the white man” – diriam as teologias feministas pós-coloniais) is god”.

 

As teologias da libertação procedem também a uma crítica radical ao recurso a Deus para legitimar uma ordem baseada na exploração dos mais fracos. Como dizem Joerg Rieger e Kwok Pui-Lan (2012: 88) “O problema mais profundo das nossas imagens comuns de Deus, apoiadas tanto por conservadores, como por liberais, é que as imagens do divino como omnipotente, impassível e imutável tendem a refletir os poderes dominantes, dos imperadores da antiguidade, aos CEOs modernos”. Aliás, as teologias da libertação afirmam que existe mesmo uma “teologização” da própria ordem social capitalista, que é elevada à condição de “plano divino”, inelutável, transmitido ao comum dos mortais pelos “sacerdotes” da religião do capital.

 

Paralelamente, existiram sempre também formas de escapar ao enunciar dominante e dominador, quer através das teologias negativas (também designadas como “apofáticas”), segundo as quais, Deus é menos o que sabemos do que aquilo que sabemos, o que leva a dizer sobretudo o que Deus não é (existem exemplos destas teologias tanto no cristianismo, como no hinduísmo e no budismo – cf. Shah-Kazemi 2006), quer através da mística, na qual as mulheres, nomeadamente, encontraram uma forma de falar de Deus que lhes permitia escapar ao controlo da ortodoxia do discurso (cf. Juliana de Norwich ou Hildegarda de Bingen, por exemplo).

 

Na segunda metade do século XX, surgiram rebeliões nas fronteiras do dizer teológico. Estas procuraram e continuam a procurar retomar a questão enunciada por Metz (“onde está Deus?”), colocando-a a partir dos excluídos – excluídos por serem mulheres, por serem colonizados, por serem pobres. As teologias articuladas a partir do lugar onde os emissores do discurso se situam desenvolvem reflexões que articulam as experiências de fé dos crentes com uma visão emancipatória, entendida, ela própria, como uma antecipação do mundo “querido por Deus”. Para as teologias feministas, isto significa a possibilidade de dizer Deus no feminino e, simultaneamente, de reconhecer que Deus está para além de todas as imagens. Para as teologias da libertação, isto traduz-se na afirmação, consentânea com a tradição das Escrituras, de que Deus não é “compreensível” se os pobres forem excluídos da história. Para as teologias pós-coloniais, tal como para as teologias interreligiosas e interculturais, falar de Deus significa falar a partir das linguagens das diferentes culturas e religiões. As rebeliões nas fronteiras do dizer geram, assim, práticas de emancipação de todas as formas de subalternização baseadas na teologização de subalternidades de género, de etnia, de cultura, de religião.

 

Assim, a questão não será apenas: “onde está Deus?”, mas também: “onde estão aqueles/aquelas que crêem em Deus?” As teologias geradoras de rebeliões nas fronteiras do dizer são, pois, teologias que tomam partido, inspiradas “na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, temor e espanto, vingança e compaixão, dos quais emerge de baixo para cima uma espécie de sabedoria partilhada do mundo” (Santos, 2013: 123). Ao estilhaçarem monismos nas linguagens acerca de Deus, estas teologias inspiram e são inspiradas em práticas de emancipação plurais, multiformes, cuja convergência está nas diversas formas que cada aproximação ao divino encontra para responder à pergunta acerca da humanidade.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Metz, Johann Baptist (2007), Memoria passionis: una evocación provocadora en una sociedad pluralista. Santander: Editorial Sal Terrae.

Rieger, Joerg e Pui-Lan, Kwok (2012), Occupy Religion: Theology of the Multitude. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers.

Santos, Boaventura de Sousa (2013), Se Deus fosse um activista dos Direitos Humanos. Coimbra. Edições Almedina.

Shah-Kazemi, Reza (2006), Paths to Transcendence: According to Shankara, Ibn Arabi, and Meister Eckhart. Bloomington: World Wisdom.

 


Teresa Toldy é teóloga, doutorada pela Philosophisch-theologische Hochschule Sankt-Georgen (Frankfurt), pós-doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Professora Associada com Agregação na Universidade Fernando Pessoa, investigadora do CES, onde co-coordena o Observatório da Religião no Espaço Público.


 

Como citar

Toldy, Teresa (2019), "Deus", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24253. ISBN: 978-989-8847-08-9