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Para entender el sentido que tiene la noción de “economía de la abundancia” es necesario aproximarnos primero al concepto de escasez y al lugar que ocupa en el pensamiento(...)
Jesús Sanz Abad

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Emoções

Susana de Noronha
Publicado em 2019-04-01

“Eu não estou a interpretar nada, eu estou a sentir!” A frase, ouvida em trabalho de campo para a escrita da ciência, foi dita em jeito de resposta, rápida e firme, carregada com a infalibilidade dos sentidos e do sentir. Nesta afirmação não se encontra qualquer tentativa de contrapor a experiência vivida do corpo com as suas explanações ou análises conceptuais. Nesta frase está presente um argumento que nos leva a repensar e reavaliar o “sentir” enquanto saber. Quem sente sabe e não depende de qualquer racionalidade externa à corporeidade para conhecer e descrever o mundo. Quem sente sabe e no dizer do sentir não existem incertezas, hipóteses paralelas ou argumentos contraditórios. O “sentir” não se apresenta como interpretação mas como facto vivido na certeza da carne e da vida, para lá de qualquer outra explicação. A frase desmonta qualquer separação entre sentir e pensar, entre corpo e mente, entre ideia e gesto. Tudo vem da soma que somos, misturando passado, experiências presentes e expectativas futuras.

 

O que são as emoções? De que são feitas e como se desfazem? Para que servem e que sentidos lhes damos? As emoções não se contam pelos dedos da mão, são muitas e todas contam para vivermos o mundo, com o corpo todo, entre o nosso e o dos outros, feitas de tudo. Saídos do útero, da barriga e matriz que nos faz, a nossa primeira experiência é sentir, das mãos que nos puxam e pegam, à mama que entra e nos alimenta. Antes de qualquer palavra ou pensamento, as sensações são tudo o que somos e temos. As emoções ganham forma e conteúdo a par com as experiências e conhecimentos que nos alargam. São feitas na relação com gente, lugares e objetos, com bichos, flores e árvores altas, chão e céu, terra e mar, luz e escuridão, dentro de portas ou em viagem, em casa e na rua, na estrada, no meio do nada, na paz e na guerra, com abundância e riqueza, ou sem nada, na pobreza. As emoções saem de imagens, sons, odores, sabores e texturas, marcadas pelo tempo que faz e pelo tempo que passa, pela idade que temos, pelas doenças que nos dobram, pelas resistências que nos levantam, até que a morte nos desfaça, ainda inteiros nas emoções de quem fica.

 

As emoções são feitas na ligação com o outro, família, companheiras/os, amigos, comunidade e sociedade, com espíritos de antepassados, santos, anjos, deuses, demónios e outras divindades, metidas na multidão. São feitas de religião, crença, cosmologia e ontologia, da forma como pensamos e fazemos o mundo, em cada contexto histórico, da cultura à política, da memória coletiva ao futuro imaginado, saídas da sociedade. As emoções vêem-se nas gelhas do rosto e nos gestos do corpo, nas palavras que trocamos, em grito ou sorriso, na forma como tocamos, nos abraços de cuidado e afeto, na violência do punho e do pé que fere o outro. As emoções vêem-se, ouvem-se e podem ser tocadas na arte que fazemos, na literatura, na música, na dança, na escultura, no teatro e na pintura, sentidas de novo por quem a procura, por quem lhe dá uso. Da imaginação criativa à vontade destrutiva, as emoções são manipuladas e usadas para criar barreiras, muros, fronteiras e paredes de centros de detenção, entre outros campos de concentração. Densificadas por teorias, ideologias e doutrinas, pelos “ismos” mais discriminatórios e opressivos, as emoções de uns são instrumento de censura sobre as emoções dos outros, afastando e silenciando corpos, identidades e vontades, dividindo tudo e todos num círculo fechado de ódio e medo. Enquanto os interesses de poucos e o desinteresse pelo sofrimento dos outros forem a razão que governa o Mundo, continuaremos partidos e todos os índices e relatórios de felicidade serão números fingidos.

 

Regressando a uma gravura da artista brasileira Wilma Martins, O Retorno, (Lamoni, 2018; Martins, 1968), criada em plena ditadura, todos e todas, gente de todas as cores e feitios, são feitos do mesmo, vindos da mesma matriz. Voltar a essa “abertura”, ao útero comum, implica o uso das nossas emoções mais largas, as afinidades, os afetos, a empatia e o amor, das artes às ciências, da religião à política, da escola ao trabalho, do berço ao caixão. As emoções, produtos e produtoras daquilo que entendemos como incorporado, cognitivo, criativo, performativo e social, são as realidades que podem informar e revolucionar a nossa razão, aceitar a “terceira metade” (Noronha, 2015) onde ninguém e nada é separável, onde tudo e todas/os se completam mutuamente, uma “esfera” onde cabem todas as experiências e conhecimentos, um círculo perfeito e aberto a todos os humanos, seres e coisas, feito do nosso melhor, cheio de laços e Nós.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Lamoni, Giulia (2018), “As Artistas Brasileiras e a Gravura: cultura popular e política nos anos 60 e 70”, comunicação apresentada no Ciclo de Seminários “WomanArt #2” do GAPS, CEHUM, Universidade do Minho, 26 de Outubro.

Martins, Wilma (1968), O Retorno [Xilogravura], [consultado em: 28/10/2018].

Noronha, Susana de (2015), Objetos Feitos de Cancro: mulheres, cultura material e doença nas estórias da arte. Coimbra: Almedina, pp. 45-49.

 


Susana de Noronha é antropóloga, doutorada em sociologia e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Enquanto fazedora de textos e ciência, é também letrista publicada e criadora de ilustração científica em fotografia, pintura e desenho etnográfico criativo. URL: www.susananoronha.com

 

 

Como citar

Noronha, Susana de (2019), "Emoções", Dicionário Alice. Consultado a 31.03.23, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24276. ISBN: 978-989-8847-08-9