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No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

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Espaço e Lugar

Patrícia Branco
Publicado em 2019-04-01

País, nação, cidade, campo, rua, casa. Espaços e lugares com que nos relacionamos ou que frequentamos habitualmente. As concepções de espaço e lugar interpenetram-se constatemente nas nossas vidas. E influenciam-se mutuamente, jogando assim com os significados que atribuímos a cada um deles, significados que são também eles situados no espaço e no tempo: a relação espaço-tempo deve ser considerada como um dispositivo cénico e de reflexão mediadora das relações sociais e de poder nos diferentes contextos históricos e geográficos (aliás, para Anthony Giddens a separação operada entre espaço e lugar é resultado de um determinado contexto – o período da modernidade – e de uma forma ocidental de encarar a realidade em termos binomiais).

 

Longe de serem estáticos ou neutros, espaço e lugar têm dinamicidade, fluidez, nuances várias. Daí que o espaço não possa ser compreendido fora do humano, independente das suas sensações e percepções, das experiências vividas, das aspirações que os povos relacionam àquele espaço ou a determinado lugar. As identidades dos espaços, do eu e do nós são mutuamente dependentes. O que implica, por um lado, estarmos conscientes da multiplicidade simultânea de espaços que ocupamos, que se interseccionam, se opõem, ou se alinham, e que dão lugar a experiências vividas diferentes, consoante as relações sociais de poder que estabelecemos com os/as outros/as nos espaços e com os espaços (Massey, 1994). E, por outro, a dificuldade em definir espaço e lugar.

 

Os estudos pós-coloniais sempre chamaram a atenção para a necessidade de pensar o espaço como dimensão integral de análise das relações sociais e de poder, nos seus vários modos. Classe, raça/etnia, género/sexo, entre outras variáveis, constroem-se nos espaços ocupados, habitados e modificados pelos corpos. Santos (2000) distingue seis espaços estruturais de produção do poder, que são também modos de produção do conhecimento e do direito. São eles o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço do mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundial. O espaço é, pois, um instrumento crítico de organização (e de disciplinação) humana e social, separando, agregando, vigiando e construindo (de formas muitas vezes abstratas e artificiais) indivíduos e comunidades – veja-se o poder dos mapas, da cartografia (geográfica, política, jurídica, simbólica), do planeamento do território e das cidades, das fronteiras, dos muros. E é a partir desta organização social operada no espaço que emergem desigualdades e disparidades geopolíticas (o caso do Norte e do Sul globais; a vinda de refugiados e migrantes para a Europa e o espaço do mar Mediterrâneo como lugar de morte), económicas (a questão de um espaço europeu, hoje bastante fragilizado pela saída do Reino Unido da União Europeia e sucessivas crises económicas) e sociais (pense-se, por exemplo, na diferenciação entre os sexos operada pela divisão entre espaço doméstico e espaço público).

 

Espaço e lugar servem, pois, de  interface com os corpos (humanos e não-humanos), e dos vários corpos entre si, com as suas identidades e pertenças; memórias; afetos e sentidos; religiões e espiritualidade; conhecimento; trabalho; família. Os corpos movem-se nos espaços, e nos espaços são sujeitos de direitos e de deveres; são sujeitos a controlos de diversa ordem; são segregados e oprimidos; são criminalizados e punidos – estamos perante espaços de regulação e/ou de violência. Mas é também nos espaços que os corpos competem e protestam, discutem e lutam acerca de ideias, cosmovisões, direitos e igualdades de oportunidades (e que se podem traduzir por lutas pelo direito à cidade ou pelo direito à terra), tornando-se o lugar onde ocorre o debate, um espaço de potencial emancipação e de democratização do direito fundamental a ocupar um determinado espaço (que pode ser um território ou uma habitação – pense-se no Movimento dos Sem Terra, no Brasil). Assim, justiça espacial (Philippopoulos-Mihalopoulos, 2015) é a luta de vários corpos – humanos, naturais, tecnológicos – para ocupar um certo espaço num determinado momento, fazendo parte das atuais discussões jurídicas, políticas, económicas e sociais que envolvem questões tão prementes como conflitos geopolíticos, problemas ambientais, colonização e pós-colonização, cidadania, migrações, conflitos religiosos, entre outras questões.

 

Hoje, é necessário pensar em contestar e renegociar os significados dos espaços, como os de espaço público e espaço privado, e criar espaços alternativos, que permitam o movimento, a criatividade, o pensamento livre. É necessário descolonizar e republicitar o espaço público, muitas vezes sujeito a privatizações de diversa ordem (é o caso dos centros comerciais ou do desaparecimento dos parques infantis públicos nas cidades, com impactos políticos profundos na forma como nos relacionamos). É necessário sair dos “não-lugares”, definidos por Marc Augé como espaços sem os elementos de identidade, relacional e histórica, e criar lugares de encontro, espaços onde a cidadania se possa manifestar.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Massey, Doreen B. (1994), Space, place, and gender. Minneapolis, University of Minnesota Press.

Philippopoulos-Mihalopoulos, Andreas (2015), Spatial Justice: Body, Lawscape, Atmosphere. Abingdon/New York: Routledge.

Santos, Boaventura de Sousa (2000), A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência. Porto: Afrontamento.

 


Patrícia Branco é doutorada em Direito, Justiça e Cidadania no séc. XXI, e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus temas de pesquisa centram-se no acesso ao direito e à justiça, arquitetura judiciária, direito e humanidades, mutações do direito da família e crianças e questões de género.

 

Como citar

Branco, Patrícia (2019), "Espaço e Lugar", Dicionário Alice. Consultado a 06.10.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24278. ISBN: 978-989-8847-08-9