Governação
Tendo tido uma propagação crescente desde os anos 1970, o termo ‘governação’ está hoje massivamente presente na literatura científica, nos discursos político-institucionais a diferentes escalas - locais, nacionais e internacionais – assim como no senso comum. Muitas vezes visto e usado de forma intercambiável com o termo ‘governo’, a palavra governação é, na verdade, expressão particularmente importante das estratégias de inspiração liberal de combate à regulação estatal e pela transferência de competências e poderes do Estado/Governo para as redes de privados. Governance without government é, pois, uma fórmula ajustada não apenas à estrutura de poder formal e institucionalizado no campo das relações internacionais (Rosenau e Czempiel, 1992) mas é igualmente uma síntese das diversas estratégias de desestatização levadas a cabo no âmbito da conquista de hegemonia pelo neoliberalismo.
Esta origem primeira não impossibilita, antes desafia, que se ensaie uma identificação dos conteúdos deste conceito não apenas no quadro da governação neoliberal como também no que possa ser a governação contra-hegemónica – para onde confluem propostas de matriz de governação desenhada pelos movimentos, redes e lutas subalternas de globalização contra-hegemónica.
Na génese da governação hegemónica neoliberal está a convicção ideológica de que a alternativa às insuficiências e excessos dos Estados como protagonistas de uma regulação social cada vez mais exigente e porosa consiste na ação de redes de atores não estatais, marcadas por uma horizontalidade procedimental alegadamente diferenciadora, com o objetivo tornar a regulação económica, social e política (e os seus processos) mais fluídos, descentralizados e, consequentemente, mais eficazes. O que prevalece neste entendimento hegemónico é, portanto, uma agenda funcionalista centrada sobre a fluidez e eficiência dos processos. Robert Cox (1997) sintetiza na expressão nébuleuse esse protagonismo do relacional e difuso nas funções de governação hegemónica neoliberal. E concretiza: “não há um processo de decisão formal; mas há um conjunto complexo de redes interrelacionadas que desenvolve uma ideologia económica comum e que injeta este produto consensualizado nos processos nacionais de decisão.”
Lançada pela Comissão Trilateral e cristalizada no Consenso de Washington, a governação neoliberal legitima-se ainda pela enunciação de uma linha abissal que descredibiliza e elimina qualquer prática diferente da prescrita pelo próprio modelo. Essa linha é definida pelo cânone da chamada ‘boa governação’. Em contraposição à agenda deste entendimento da governação, a hipótese de uma governação contra-hegemónica surge de várias propostas desenhadas por um conjunto vasto de movimentos, iniciativas e coletivos vários apontadas à densificação de uma globalização contra-hegemónica e animado por um cosmopolitismo subalterno e que assume, por isso, uma multiplicidade de agendas e de abordagens sem uma prévia hierarquização. Essa constelação de propostas de governação contra-hegemónica arranca de uma cultura de relação entre emancipação e regulação completamente diferente da que subjaz à prática de governação hegemónica. Desde logo, valorizando o ‘como’ como parte do ‘o que’, estas propostas sublinham o imperativo de formas participativas de deliberação, como a democracia participativa a partir de baixo, e formas de luta plurais que combatam a opressão nas suas variadas figuras e origens, abarcando em simultâneo as múltiplas interações sociais estruturadas pela desigualdade de poder. Para ser levada a cabo, a governação contra-hegemónica implica a articulação e a coordenação de uma panóplia vasta de movimentos sociais e organizações da sociedade civil a fim de levar a efeito ações coletivas, otimizando resultados, impacto e força.
Para além da exigência de participação igualitária no processo de debate e de decisão, todo o discurso sobre governação contra-hegemónica se reclama cada vez mais de uma visão desromantizada dos atores que a protagonizam. À idealização de uma horizontalidade e de um descomprometimento das redes e do ‘social-não-estatal’ produzida pelos pensadores da governação hegemónica, contrapõe-se uma dupla crítica. Em primeiro lugar, qualquer horizonte de governação contra-hegemónica repudia idealismos feitos à medida dos interesses dominantes e é profundamente exigente no acolhimento da noção de que essencial a qualquer contra-hegemonia é a capacidade de inverter relações de forças em todos os contextos – desde o institucional ao social, incluindo as instâncias produtoras de senso comum. O que quer dizer que uma governação contra-hegemónica é algo que se disputa em todas as instâncias – formais e não formais – em que a hegemonia se afirma e consolida. A governação contra-hegemónica só existirá se houver simetria de desempenho e de ambição com as práticas de governação hegemónica: nem uma nem outra são coisa de governos ou sequer de instituições, são antes coisa de mobilização de força social. Há um segundo nível de crítica envolvido na teorização de uma governação contra-hegemónica: para esta, o Estado não é um facilitador da desgovernamentalização da governação, é antes um pilar de subtração de bens públicos ao livre comércio jurídico e económico e, como tal, um mecanismo de primeira importância no confinamento da livre disposição de recursos pelos privados.
Referências e sugestões adicionais de leitura:
Cox, Robert (1997), “Democracy in hard times: economic globalisation and the limits to liberal democracy”, in McGrew, A. (ed.) The Transformation of Democracy? Globalisation and Territorial Democracy. Cambridge: Polity Press: 49-72
Rosenau, James N. e Czempiel, Ernst-Otto (1992), Governance without Government: Order and Change in World Politics, Cambridge Studies in International Relations, Cambridge: Cambridge University Press.
Santos, Boaventura de Sousa (2005), “A crítica da governação neoliberal: O Fórum Social Mundial como política e legalidade cosmopolita subalterna”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, Outubro 2005: 7-44.
José Manuel Pureza é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na área de Relações Internacionais, e Investigador do Centro de Estudos Sociais.
Sofia José Santos é investigadora no Centro de Estudos Sociais, IP do projeto DeCodeM, financiado pela FCT, desenvolvendo investigação sobre media e intervencionismo global, media e securitização, e internet e tecnopolítica. É doutorada em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra.
Como citar
Pureza, José Manuel; Santos, Sofia José (2019), "Governação", Dicionário Alice. Consultado a 15.10.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24294. ISBN: 978-989-8847-08-9