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Maria Irene Ramalho

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Insurgência

Carlos Nolasco
Publicado em 2019-04-01

No final do século XX, as grandes insurgências que marcaram a modernidade chegaram aparentemente ao fim: a insurgência colonial, iniciada em 1776 com a declaração de independência dos EUA, culminou dois séculos depois com o final do império colonial português e a declaração de independência dos países até então colonizados; a insurgência pelos direitos sociais, políticos e económicos, ideários iluministas e liberais proclamados na Revolução Francesa de 1789, cristalizaram-se nos Estados modernos e correspondentes sociedades civis; a insurgência socialista, com o apelo à união de todos os proletários do mundo, teve o seu epílogo com a dissolução da URSS em 1991 e a supremacia avassaladora do capitalismo. Os resquícios insurgentes que restaram ficaram localizados e relativamente neutralizados nos seus efeitos.

 

O conceito de insurgência ficou reduzido na sua expressão política. Do sentido etimológico de insurgentia, enquanto ação de se erguer contra algo, assumiram-se os sinónimos de insurreição, rebelião, sublevação e revolução, sendo utilizados para ilustrar movimentos que através de força armada pretendem depor uma ordem existente. Este entendimento de insurgência é expresso no Guide to the Analysis of Insurgency, publicado pelo governo dos Estados Unidos (2012), no qual se descreve a insurgência como um levantamento político-militar que visa subverter ou depor um governo com o objetivo de controlar os seus recursos e territórios, através de forças irregulares e organizações políticas ilegais. Esta perspetiva é fundamentada em conflitos recentes, nomeadamente na guerra do Afeganistão, em 2001, ou na guerra do Iraque, em 2003, nas quais as coligações lideradas pelos EUA confrontaram-se com insurgências que prolongaram o conflito para além do expectável. A acompanhar esta conceptualização de insurgência, encontra-se a contrainsurgência, enquanto estratégia de contrariar ou anular essas forças irregulares.

 

Nos anos que levamos de século XXI, são muitos os fenómenos que podem ser considerados como insurgentes: desde 2001, a realização do Fórum Social Mundial, onde se procuram alternativas à atual ordem global; em 2005 e 2006, insurreições nas periferias das principais cidades francesas; a partir de 2010, a Primavera Árabe, que entre protestos e revoluções afetou o norte de África e o Médio Oriente; em 2010, os protestos na Praça Sintagma como resposta à imposição da austeridade resultante da falência do sistema financeiro da Grécia; em 2011, Occupy Wall Street foi o protesto contra o sistema financeiro e o seu condicionamento da vida política, com posteriores réplicas em diversas partes do mundo; em maio de 2011, o movimento 15-M em Espanha, reivindicação cidadã por uma democracia mais participativa; em 2013, em Portugal, as manifestações dos indignados para com as políticas de austeridade impostas pela “troika”; também em 2013, os protestos no Brasil, conhecidos como Manifestações dos 20 Centavos, inicialmente uma contestação ao aumento do preço dos transportes públicos que se ampliou à corrupção, violência policial e gestão dos serviços públicos; em 2014, os protestos contra o governo Mexicano pelo assassinato de 43 estudantes; os sucessivos protestos contra a morte de cidadãos norte-americanos negros pela polícia, em Baltimore, em 2014, e em Mineápolis em 2015; a auto proclamação do Estado Islâmico em junho de 2014, reivindicando a instauração de práticas religiosas e a liderança do mundo islâmico sob a forma de califado. Estas terão sido as insurgências mais mediáticas, outras se sucederam, com carater local, estratégias menos impactantes e agendas mais discretas.

 

Todos estes factos remetem para distintos tipos de insurgências, com diferenças tão significativas que em alguns casos tornam os movimentos insurgentes antagónicos. Se algumas dessas insurgências correspondem a processos insurrecionais conservadores como as “velhas” lutas operárias e insurreições guerrilheiras, outras constituem-se como novidade pela forma como acontecem, pelos atores implicados, pela escala em que ocorrem, como são os movimentos emancipatórios de género, etnicidade, sexualidade, meio ambiente, direitos humanos, ou direitos dos animais, entre outros (Della Porta, 2011).

 

Os processos hegemónicos de globalização, o neoliberalismo exacerbado e o capitalismo selvagem, suscitaram essas novas insurgências, as quais se caracterizam por sinónimos como resistência, resiliência, desobediência, emancipação, indignação e reivindicação, marcadas pela recusa da ordem vigente e pela busca de alternativas. Por isso, esses movimentos apresentam-se como contra-hegemónicos, e apesar de alguma heterogeneidade no perfil dos atores insurgentes, bem como da localização das insurgências, há a cumplicidade de objetivos, argumentos e estratégias comuns, concertadas através do recurso a redes digitais.

 

Num momento de esgotamento e transição paradigmático, o resgate das epistemologias do Sul enquanto questionamento do hegemónico conhecimento científico e correspondentes concepções ortopédicas do mundo, a cujas perguntas fortes apenas são dadas respostas fracas, constitui-se uma das mais importantes instigantes insurgências contemporâneas. Oferecendo a ecologia dos saberes como forma de entendimento do mundo, e clamando pela urgência de mudança civilizacional, pela construção de um senso comum emancipatório e por organizações doutamente ignorantes, politicamente ecológicas e decididamente apostadoras nas potencialidades emancipatórias (Santos, 2008), as epistemologias do Sul são a expressão insurgente que se levanta perante a hegemonia do colonialismo, do capitalismo e patriarcado.

 

Depois da aparente neutralização das insurgências, há como que o retomar de um novo programa insurgente, insurrecional e emancipatório num novo contexto pós-colonial, de cidadania participativa e perspetiva crítica.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:

CIA (2012), Guide to the Analysis of Insurgency. Washington DC: US Government. [url:http://www.mccdc.marines.mil/Portals/172/Docs/SWCIWID/COIN/Doctrine/Guide%20to%20the%20Analysis%20of%20Counterinsurgency.pdf consulta em 10 de janeiro de 2016].

Santos, Boaventura de Sousa (2008), “A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 80. 11-43.

Della Porta, Donatella (2006), Social Movements. Oxford: Blackwell Publishing.

 

Carlos Nolasco, sociólogo, doutorado, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Tem como áreas de trabalho as Migrações de Trabalho Desportivo, a Sociologia do Desporto, do Direito e a política dos refugiados.

 

 

Como citar

Nolasco, Carlos (2019), "Insurgência", Dicionário Alice. Consultado a 20.04.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24304. ISBN: 978-989-8847-08-9