Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

Destaque Semanal

No imaginário ocidental, o nome “Alice” traz de imediato à ideia as narrativas nonsense de Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland  (1865) e Through the Looking Glass(...)
Maria Irene Ramalho

 

 

Intersubjetividade

Carolina Peixoto
Publicado em 2019-04-01

Qualquer ser humano, em qualquer ponto no tempo e no espaço, é produto da auto-criação dinâmica de sua história, o que inclui a história das suas relações com os outros. Por isso, o ser humano concreto só pode ser compreendido em suas relações. Para Martin Buber (2001), intersubjetividade é o que o ser humano tem de mais essencial. Em sua filosofia vale a fórmula – muitas vezes encontrada na fenomenologia existencial – ‘existir é coexistir’, uma vez que os seres humanos só existem no mundo compartilhando sua existência com tudo aquilo que está nele.

 

Na prática, a intersubjetividade emerge sempre a partir de relações específicas estabelecidas entre indivíduos e o caráter da intersubjetividade é sempre específico para as relações sociais em que estão envolvidos. Contudo, ainda que implique uma abertura aos outros, a intersubjetividade não se caracteriza como uma comunicação de significados compartilhados nem implica a ideia de que uma pessoa será capaz de assumir o “papel de outra”.

 

Para Christina Toren (2012), a intersubjetividade informa o nosso modelo de ontogenia humana, pois ao longo de toda a sua existência, o indivíduo elabora continuamente o sentido de si, seu próprio self, em relação às ideias que vários outros indivíduos do mesmo modo únicos – parentes, amigos/as, professores/as, etc. – têm sobre quem se espera que ele ou ela seja no presente e venha a tornar-se no futuro. Alguns estudos sobre o desenvolvimento infantil inicial reportam como a intersubjetividade manifesta-se desde os primeiros meses de vida dos bebês humanos que são, portanto, criaturas sociais desde seu nascimento. (Nogueira e Moura, 2007). Continuamente, ao longo de toda a sua vida, cada ser humano constitui-se como sujeito consciente de sua própria existência, em função do seu entendimento sobre quem ele ou ela foi/é/seria em relação aos outros. Todos os seres humanos fazem o mesmo. Assim, cada ser humano constitui-se como um ser único, um produto sempre dinâmico da história das relações intersubjetivas no âmbito das quais transcorre sua trajetória de vida.

 

A intersubjetividade pode ser traduzida analiticamente em termos sociológicos, psicodinâmicos, emocionais, cognitivos e de desenvolvimento. Apesar de suas especificidades, cada uma destas múltiplas e complexas facetas analíticas têm como ponto de partida o diálogo, uma vez que as relações humanas, para serem estabelecidas, envolvem um esforço contínuo de comunicação. Todo diálogo subentende o uso de uma linguagem através da qual um indivíduo transmite uma mensagem a outro(s). Ao aprender a usar uma linguagem, concomitantemente aprendemos sobre a própria linguagem – o que ela faz e como –, mas também estamos aprendendo a ser em relação aos outros, ou seja, estamos constituindo uma ideia de nós mesmos como sujeitos em função da intersubjetividade.

 

A perceção nortecêntrica da linguagem como uma ferramenta analítica fomentou ao longo da história uma série de inovações tecnológicas que têm persuadido a maioria dos indivíduos imersos na cultura judaico-cristã ocidental a crer que suas ideias são objetivamente verdadeiras, enquanto as ideias de outras pessoas seriam resultado de uma subjetividade considerada culturalmente relativa, a qual, por causa de uma suposta superioridade tecnológica, os ocidentais estariam imunes.

 

Com as Epistemologias do Sul, Boaventura de Sousa Santos convida-nos a ampliar as conversas do mundo, reconhecendo não só que outras pessoas vivem no mundo de acordo com seu próprio entendimento do mundo – assim como nós – mas que, apesar do fato de suas ideias poderem ser muito diferentes das nossas e de que nem todas as ideias são científicas, teremos sempre algo a aprender se apostarmos no diálogo. Paradoxalmente, um diálogo não começa com um ato de enuciação, mas sim com um ato de escuta, o que requer abertura ao mundo, a um outro, invocando assim a relação dialógica que habita o terreno do “entre”. Um ser humano que jamais aprendeu a escutar, nunca será capaz de dialogar. Oxalá já não demore muito mais a chegar o dia em que todos e todas saibamos escutar.

 


Referências e sugestões adicionais de leitura:

Buber, Martin (2001), Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles von Zuben. São Paulo: Centauro.

Nogueira, Susana Engelhard; Moura, Maria Lucia Seidl de (2007), “Intersubjetividade: Perspectivas teóricas e implicações para o desenvolvimento infantil inicial”. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum, Vol. 17(2): 128-138.

Toren, Christina (2012), “Intersubjectivity as Epistemology”, in Christina Toren e João de Pina-Cabral (eds.), The challenge of Epistemology: anthropological perspectives. New York and Oxford: Berghahn Books. pp. 130-146.

 

 

Carolina Peixoto é doutorada em Pós-colonialismos e Cidadania Global pela Universidade de Coimbra e Professora responsável pela introdução das Epistemologias do Sul no conteúdo programático oferecido aos estudantes de licenciatura da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de Concepción (UdeC), Chile.

 

 

Como citar

Peixoto, Carolina (2019), "Intersubjetividade", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24307. ISBN: 978-989-8847-08-9