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Normal/Patológico

Raquel Siqueira-Silva
Publicado em 2019-04-01

A distinção normal/patológico está no centro da medicina e da biologia ocidentais. Ela permite diferenciar o estado considerado normal de um organismo – o estado de saúde – daquele em que a normalidade é perturbada ou ameaçada por alguma forma de doença ou distúrbio. Georges Canguilhem (1995) considerou que a doença está sempre associada à normatividade do biológico, a uma procura de um estado que o organismo afetado pela doença reconhece o regresso a uma normalidade, mesmo que esta não corresponda a uma restauração integral da situação anterior.


A dicotomia normal-patológico inscreve-se em quadros nosológicos, com as suas listas de sintomas ou de síndromes e de etiologias, assim como de prescrições preventivas, diagnósticas ou terapêuticas destinadas a restabelecer uma normalidade afetada por uma perturbação ou doença ou pelo risco de doença. O saber biomédico, com a sua pretensão de diagnóstico preciso, trouxe a visão de que é possível identificar atributos e comportamentos que alegadamente permitem diferenciar a normalidade, a saúde e a razão do distúrbio, da perturbação, do desvio ou da doença. Para lidar com essas manifestações patológicas ou desviantes, a medicina recorre a práticas de prevenção, procedimentos clínicos e uma farmacopeia de drogas sintéticas que prometem aliviar os sofrimentos existenciais e as dores dos corpos. Consomem-se medicamentos que prometem o alívio do sofrimento físico e psíquico, mas também a melhoria do desempenho orgânico e intelectual. No campo da saúde mental, a noção do patológico é ampliada, abrangendo manifestações geralmente associadas à loucura ou à desrazão, designadas de distúrbio, degeneração, ou, de maneira mais geral, de desajustamento à ordem social.


A extensão da autoridade da medicina e dos seus saberes referidos aos conflitos sociais, designada em geral de medicalização, permite a patologização destes e das respostas a diferentes formas de exploração capitalista e de opressão sexista, racial, homófoba, entre outras.


A monocultura dos saberes preventivos/diagnósticos/terapêuticos sustenta a pretensão de universalidade de um poder que tenta esmagar as diversidades dos modos de conhecer e a riqueza imensa da experiência existente no mundo. As desigualdades e exclusões próprias do capitalismo, do patriarcado e da colonialidade – elas próprias designadas pelos seus críticos de patologias do poder (Farmer, 2005) –, traçam as linhas abissais que opõem os saberes do sofrimento do lado das zonas “selvagens” aos saberes do patológico do lado das zonas “civilizadas”. Contra essa divisão emerge a luta pelo reconhecimento da diversidade e interlocução mútua de saberes ditos, escritos, pensados e agidos por aqueles que habitam o lado “selvagem” da linha abissal, o lado designado do patológico, da desordem e do caos, oposto à normalidade e à ordem do lado “civilizado” (Santos, 2010).


A patologização dos que habitam o lado “selvagem” tem sido ampliada a diferentes formas de resistência, de mobilização social e a diferentes formas de luta pela dignidade humana, ao mesmo tempo que serve para promover a produção ativa e deliberada de ignorância sobre as condições que geram as formas de opressão, de violência e de desigualdade e exclusão próprias das dinâmicas persistentes da ordem capitalista, patriarcal e colonial. Essa patologização é inscrita nos corpos, nas culturas, nas experiências históricas daqueles e daquelas a quem é negado o reconhecimento da sua humanidade, da sua dignidade e dos seus direitos.


A divisão entre o normal e o patológico, para além de um elemento central dos saberes da biologia e da medicina ocidentais, aparece assim como construção sócio-cultural-econômica-política, nos processos hegemônicos de produção da ordem social global e das subjetividades contemporâneas. Daí que, a partir do próprio campo da saúde – incluindo a saúde mental – apareçam outros modos de lidar com a incerteza e a precariedade da existência coletiva e das manifestações incorporadas daqueles e daquelas que a protagonizam, colocando no centro os saberes e experiências de sofrimentos e de lutas. Identificar as ausências, as exclusões, os silêncios, as invisibilidades e as supressões dessas experiências e lutas é a condição para a emergência de outras concepções do que conta como normal, este radicado em existências situadas, coletivas e incorporadas, oposto ao imperativo da normalização como supressão da diversidade de experiências e saberes, como exigência de justiça cognitiva, social e histórica.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Amarante, Paulo; Torre, Eduardo Henrique Guimarães (2010), “Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas”, in Roberto Passos Nogueira (org.), Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 151-160.
Canguilhem, Georges (1995), O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.
Farmer, Paul (2005), Pathologies of Power. Berkeley: University of California Press.
Santos, Boaventura de Sousa (2010), “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, in Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 31-83.

 

Raquel Siqueira-Silva é professora e pesquisadora na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Realizou pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais (CES). É doutorada e mestre em Psicologia- Estudos da Subjetividade pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Musicoterapia (CBM-CEU) e Psicóloga (UGF-RJ).

 

Como citar

Siqueira-Silva, Raquel (2019), "Normal/Patológico", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24433. ISBN: 978-989-8847-08-9