Poética
Pela Poética acessamos o mundo poeticamente, uma experiência de conhecimento em que a imaginação, como forma de recriação da realidade, enche-nos de vontade de adivinhar outros mundos, quiçá mundos ausentes, possíveis, onde aspira-se uma dilatação do presente e contração do futuro, um movimento alcançado pelos criadores literários, pelo pensamento poético. Nas epistemologias do Sul, Santos propõe uma sociologia das ausências para expandir o presente; e para contrair o futuro, uma sociologia das emergências (Santos, 2010: 89). A realidade não se reduz ao que existe (Santos, 2002: 23), portanto, a realidade poética “não é somente a que há e a que é, mas a ainda não havida ou não havida já e a que não é” (Zambrano, 2000: 69).
Recriar a realidade com a imaginação é uma atividade que envolve consciência e lucidez, porque toda criação poética é um olhar crítico à realidade. A imaginação traduz um saber, que “transvê” (Barros, 2010: 350) e “transfaz” (Ibidem: 245) poeticamente a realidade; é uma consciência operada por outra racionalidade. No conjunto conceitual das epistemologias do Sul esta consciência está vinculada à racionalidade estético-expressiva (Santos, 2002: 71-74), que resistiu aos processos de colonização epistémica. Neste domínio articulam-se em atitudes: o prazer, a autoria e a artefactualidade discursiva (Ibidem). É pela condição de inacabamento que nos reconciliamos com nossa criança e com perguntas simples alcançamos uma inocência que alarga possibilidades criativas.
A unidade Poética é incompleta, elástica e ilimitada; seu modo de conhecer não exerce violência sobre as coisas, antes está interessada na multiplicidade. Dessa forma, tem ligação direta com a vida, evitando o conhecer por abstração. Sua verdade não exclui, nem é imperativa (Zambrano, 2000: 70). A Poética se faz na palavra, – tudo é palavra –, reside na criação e expressão pela palavra, que é a «poiesis» (Ibidem: 48). Na Poética, as palavras se ajuntam uma na outra por amor, não por sintaxe (Barros, 2010: 450). As palavras buscam emancipações e ao emanciparem-se deixam “de ser linguagem sagrada para ser poesia, linguagem humana” (Zambrano, 2000: 44); e sendo humana será então uma memória inventada e trará nossas elegias, alegrias, raivas e silêncios. Na Poética, as palavras têm vida, “têm carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.” (Barros, 2010: 249), e por isso abrem fendas na realidade, não regressando ilesas desta. Na Poética, as palavras alcançam o grau de brinquedo, chegando ao estado de “criançamento” (Ibidem: 339), um lugar onde a paisagem de um rio, que faz uma volta atrás da casa, parece-se mais com uma cobra de vidro, não traz qualquer semelhança com uma enseada.
Na Poética, aprender é também desaprender; e conhecer pode ser uma forma de “compreender o mundo sem conceitos” (Barros, 2010: 383). Um conhecer que atinge o reino das imagens, um lugar onde o pensar acontece com o sentir, portanto, um conhecer-sentir, pelo caminho íntimo. Na Poética, o mundo pode ser refeito por imagens, eflúvios e afeto (Ididem). Sendo, o pensamento poético, esse alcance da realidade pela imaginação, o entendimento não é pela explicação, que leva muito tempo; o entendimento poético corta caminho, vai pelo caminho mais íntimo. Nas epistemologias do Sul, Santos diz que a forma de compreender o real pela intimidade conduz-nos ao reencantamento do mundo (Santos, 2002: 108); reflete-nos como num espelho diante de objetos distantes (Ibidem: 85); rompe com as dicotomias e com o tempo linear; substitui a relação “objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos” (Ibidem: 79), havendo assim uma continuação entre esses dois lugares, atingindo reconhecimentos e nos unindo, pessoalmente, ao que estudamos (Ibidem: 80).
Somos percorridos de existências, atravessamos fronteiras do tempo – porque tudo é tempo. Vivemos e contemplamos paisagens feitas por nós, caminhamos pelas linhas tortas dos deuses. As paisagens que criamos vadiam dentro dos nossos olhos, queremos albergar realidades inabarcáveis pela razão científica (Zambrano, 2000: 19). A imaginação é uma maneira de reduzir o isolado que somos; ela alarga os nossos limites (Barros, 2010: 209). Somos aquilo que ajuntamos, e se estamos vezeiros no ato de ajuntar coisas feias, é tempo de ver se nosso relógio está com o tempo enferrujado, e se o tempo enferrujou é tempo de “aumentar o poente com o olho” (ibidem: 322), quem sabe assim encontramos e/ou seremos encontrados por verbos que nos ajudem a comunicar nossos silêncios e incompletudes. A Poética recria as vozes do mundo, vozes que nos reconciliam, porque sendo a Poética épica ou lírica, repetiremos nossas histórias para não esquecermos quem somos e seguraremos no tempo as paisagens que ampliam e fortalecem as nossas lutas.
Referências e sugestões adicionais de leitura:
Barros, Manoel (2010), Poesia Completa. São Paulo: Leya.
Santos, Boaventura de Sousa (2002), A crítica da Razão Indolente – Contra o desperdício da experiência. Porto: Editora Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2010), A Gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Editora Afrontamento. [2.ª ed.]
Zambrano, Maria (2000), A metáfora do coração e outros escritos. Lisboa: Assírio & Alvim. Tradução de José Bento.
Maisa Antunes é Doutoranda do Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra, Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Atuou em projetos artísticos. Participou da elaboração de livros didáticos para crianças do/no semiárido brasileiro. É professora na Universidade do Estado da Bahia.
Como citar
Antunes, Maisa (2019), "Poética", Dicionário Alice. Consultado a 15.10.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24486. ISBN: 978-989-8847-08-9