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Trocas (inclui sistemas de troca)

Luciane Lucas dos Santos
Publicado em 2019-04-01

O termo troca assume diferentes significados de acordo com o contexto. Recuperar alguns destes sentidos permite-nos acompanhar sua transformação social e seu potencial emancipatório no âmbito de uma outra economia.

 

As trocas usualmente remetem à ideia de equivalência, envolvendo uma contrapartida por ocasião da transferência de bens. Apesar de possuir pontos de interseção, as trocas, como modo de construção do laço social, se diferenciam da dádiva e da reciprocidade. Grosso modo, a reciprocidade aparece como “preocupação com o Outro”, como “motivos ou obrigações para produzir” (Sabourin, 2008: 135). A dádiva, por sua vez, surge como uma espécie de “laço de energia espiritual entre os atores” (ibidem: 132), conformando um compromisso de três dimensões: dar, receber e retribuir. Uma economia da reciprocidade marca, nestes termos, uma importante diferença em relação às trocas económicas ocidentais. Nela, não é o sistema de mútuas prestações que se mantém pela necessidade de garantir a sobrevivência; antes, é a produção de riquezas materiais que funciona como meio de manter a prestação da dádiva como lógica social (Temple, 2003; Sabourin, 2008). Pode-se dizer que as economias indígenas assumem esta lógica em seus circuitos internos, baseando-se principalmente na reciprocidade e na redistribuição.

 

Apesar destas diferenças conceituais, nem toda troca se resume a uma transação mercantil. Tendo ainda em conta as formas de intercâmbio das economias indígenas - de que as feiras no altiplano andino são um exemplo -, observamos que, nestes espaços da vivência originário-campesina, não predominam as regras da oferta e da procura mas, sim, as relações de parentesco e compadrio, os intercâmbios simétricos e a dimensão espiritual. A troca, nestes ‘mercados de reciprocidade’ incrustados nos espaços urbanos e periurbanos, à semelhança de outras formas subalternas e periféricas de organização da vida material, assume um sentido bem mais arcaico e próximo do que Mauss chamou de ‘moral da dádiva-troca’, em que o princípio mais importante a preservar é justamente o do laço social.

 

Nas periferias do Sul Global, em que a economia mainstream legitima e acentua desigualdades, temos visto também uma importante articulação subalterna para enfrentar a vulnerabilidade sócio-económica estrutural. Ganham força e expressão saberes e fazeres que, no âmbito das Epistemologias do Sul, acenam com a pertinência e a urgência de se “ampliar o espectro do possível” (Santos e Garavito, 2003). As trocas mercantis, neste contexto, ultrapassam também o económico, disseminando-se através de feiras e mercados populares. Reunindo-se em grupos, mulheres e homens - mas principalmente mulheres - têm colocado em circulação saberes, bens e serviços, com a intenção de transformar precariedade em abundância. Nas periferias das grandes cidades, criam e adotam moedas sociais para facilitar e mediar as trocas, construindo autonomamente a resposta para um duplo problema: 1) como adquirir bens essenciais na ausência do dinheiro? 2) como disponibilizar bens, serviços e saberes na vizinhança, quando estão todos na mesma situação de precariedade? Importa referir que, produzindo bens ligados aos seus saberes e na contramão de uma lógica produtivista cujo ritmo destoa das urgências do capital, estas mulheres participam da tessitura de uma ecologia das produtividades (Santos, 2006), em que sistemas alternativos de produção e consumo reforçam outras sociabilidades, lógicas e estéticas.

 

Estes circuitos de troca mostram o potencial transformador das emergências (Santos, 2006), já que os diferentes saberes das pessoas criam laços de solidariedade, fortalecem comunidades economicamente frágeis e alimentam uma economia de proximidade. Nesta construção, em que o coletivo partilha e multiplica os escassos recursos individuais, outros códigos de sensibilidade, outras noções de belo e de útil florescem. A distinção social, que usualmente marca as experiências de consumo, cede lugar a outros critérios de pertença e de reconhecimento no interior dos grupos. Neles, não são raras as rodas de diálogo em que as mulheres, em meio às trocas daquilo que produzem, se põem a refletir sobre temas urgentes, como a violência doméstica, a pobreza estrutural, a soberania alimentar e a relação entre campo e cidade. Nestes diálogos, exercitam-se três coisas fundamentais sem as quais não se poderia pensar, hoje, a emancipação social: a consciência crítica, a solidariedade e o encontro das diferenças.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Sabourin, Eric (2008), “Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 23(66), 131-138.
Santos, Boaventura de Sousa; Garavito, César Rodriguez (2003), “Para ampliar o cânone da produção”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Produzir para viver: os caminhos da produção não-capitalista. Porto: Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2006), A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.
Temple, Dominique (2003), Teoría de la Reciprocidad. La economía de reciprocidad. Tomo II. La Paz: PADEP-GTZ.

 

Luciane Lucas dos Santos é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, co-coordenando o núcleo de investigação em Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Entre seus principais temas de investigação estão: Economia Feminista, Estética Feminista e estudos pós-coloniais da Economia.

 

Como citar

Lucas dos Santos, Luciane (2019), "Trocas (inclui sistemas de troca)", Dicionário Alice. Consultado a 29.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24572. ISBN: 978-989-8847-08-9