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Maria Irene Ramalho

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Cidades

José António Bandeirinha
Publicado em 2019-04-01

A questão da origem das cidades tem sido muito estudada pelos saberes associados à tradição científica e filosófica ocidental. Dessa vasta vertente epistemológica, duas condições são de salientar, a hipotética preponderância do fenómeno da acumulação de poder, por um lado, e a tensão dialéctica entre realidade e projecto, por outro lado.


A primeira destas condições, de influência moderna, está substancialmente posta em causa pela emergência arqueológica de um número cada vez maior de aglomerados urbanos arcaicos, alguns deles do período neolítico, que sugerem uma origem comercial, e necessariamente intercultural. Situam-se maioritariamente no que viria a ser designado como Rota da Seda e, ao contrário das cidades da rede urbana do Crescente Fértil, ou mesmo daquilo que mais recentemente verificamos na polis helénica, não são coroadas por cidadelas do poder, as suas construções têm um cariz igualitário e o seu traçado é menos hierarquizado. Çatal Huyuk, na Anatólia Central, é o exemplo mais conhecido deste modelo histórico, já tinha uma estrutura urbana activa no sétimo milénio A.C. e possuía uma plena consciência da sua existência enquanto cidade, expressa através de desenhos que a representam em planta. Isso leva-nos à segunda daquelas condições, uma cidade funda-se sempre na tensão dialéctica entre a realidade e o desejo. O contraponto à cidade existente é sempre o projecto de uma outra cidade, e isto é válido para as mitologias de raiz judaico-cristã — Babel e Jerusalém — mas também em parte para as islâmicas — Meca e Medina.
De um modo simples e eloquente, Claude Lévi-Stauss tinha já identificado e sintetizado estas duas condições, referindo a cidade como sendo ao mesmo tempo objecto de natureza e sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência (Lévi-Strauss, 1981: 117).


Com o crescimento desmesurado das cidades ocidentais ao longo do Século XIX foi gerada uma outra entidade, a metrópole, corroborando a ideia que o crescimento da cidade poderia ser infinito, que o mundo inteiro poderia ser uma só cidade. Num primeiro momento, este fenómeno de metropolização das principais cidades industriais provocou um efeito de estranhamento muito proveitoso do ponto de vista cultural, em particular para as elites intelectuais do norte, e deu origem ao florescimento das designadas vanguardas. Walter Benjamin reflecte sobre esse estranhamento, incidindo ainda sobre a possibilidade da cidade sobreviver nos meandros intersticiais da metrópole (Benjamin, 2004).
Num segundo momento, contudo, a metropolização foi assumida como fortemente lucrativa, do ponto de vista da produção de espaço. O alastramento indefinido do negócio fundiário e imobiliário seduziu o investimento e provocou a institucionalização política da estratégia metropolitana. Não foi por acaso que, na sequência da Segunda Guerra Mundial, com o fordismo em acelerada euforia, o governo federal dos EUA gerou os mecanismos essenciais ao fomento da habitação isolada. Entram em actividade em todo o território vários programas de incentivo e de encorajamento à dispersão suburbana, providenciando planos de hipotecas para a edificação de 11 milhões de casas unifamiliares suburbanas, no total.


O mercado automóvel floresceria de modo vertiginoso ao longo deste mesmo período, como é sabido, e tornar-se-ia acessível à maioria dos cidadãos norte-americanos. A partir daí, a globalização dos mercados fundiários e imobiliários gerou o alastramento mundial desta estratégia, que é simultaneamente política e negocial. O american dream insinuou-se como padrão de vida global e o espaço em volta das cidades passou a ser ocupado de modo extensivo.
A metrópole é o território do desperdício do espaço que a cidade, na sua concentração ordenada por uma experiência milenar, sempre concebeu como um bem escasso e precioso. E o espaço é o último dos recursos do planeta a ser considerado finito pela consciência colectiva.


Já no início do Século XXI, Françoise Choay adverte que o urbano, modelo cultural hegemónico, se desvinculou da ideia de espaço que lhe estava associada e alastrou por todo o território, provocando a morte da cidade (Choay, 2006: 165-198).
Hoje em dia a cidade, como entidade, vive momentos de confrontação com a imposição hegemónica do modelo metropolitano. Estes momentos podem, e devem, ser lidos e entendidos à luz das lógicas de produção da não existência, tal como definidas por Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2002: 237-280), em particular das lógicas produtivista e da escala dominante, mas também na lógica da classificação social. Para enfrentar essa situação e sobreviver, a cidade deve confrontar a tendência metropolitana hegemónica com a recuperação e a revitalização das suas características alternativas, no intuito de superar as totalidades homogéneas e excludentes da lógica metropolitana, questionando-a permanentemente, sobretudo através da ecologia de produtividade e da ecologia das trans-escalas, mas também através da ecologia dos reconhecimentos e da dos saberes.


A cidade possui no seu código genético esse impulso de desejo que a associa indelevelmente ao devir, ao projecto de uma cidade melhor. Como tal, ela pode e deve munir-se de toda a experiência passada e partir para a identificação das alternativas e das expectativas imensas que a sua situação presente comporta. Deve também, e em suma, ser estudada à luz da sociologia das emergências.

 

Referências e sugestões adicionais de leitura:
Lévi-Strauss, Claude (1981), Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70.

Benjamin, Walter (2004), The Arcades Project. Cambridge, Massachusetts and London: The Belknap Press of Harvard University Press. Translated by Howard Eiland and Kevin McLaughlin. Prepared on the basis of the german volume edited by Rolf Tiedmann.

Choay, Françoise (2006), “Le règne de l’urbain et la mort de la ville”, in Françoise Choay, Pour une Anthropologie de l’Espace. Paris: Éditions du Seuil, 165-198.

Santos, Boaventura de Sousa (2002), "Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências", Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 237-280.

 

José António Bandeirinha é arquitecto pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto. É Professor Catedrático e Diretor do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, onde se doutorou em 2002 com uma tese intitulada O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974. É também investigador do Centro de Estudos Sociais.

 

Como citar

Bandeirinha, José António (2019), "Cidades", Dicionário Alice. Consultado a 28.03.24, em https://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24632. ISBN: 978-989-8847-08-9